domingo, 7 de setembro de 2008

a cidade e os seus















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De uns tempos para cá tenho me dedicado a realizar os meus desejos. Ando pensando muito sobre a energia dos desejos não praticados e sinto como se cada desejo não posto em prática fosse criando uma espécie de reservatório de frustrações.

Às vezes parece que o mundo conspira a nosso favor quando simplesmente embarcamos nessa onda e paramos de pesar cada pró e cada contra que implica realizar uma vontade. Matar uma vontade não deveria nunca demandar muito pensamento. Esforço sim.

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Aqui nessa pequena cidade chamada Lajeado tento praticar o meu lado hedonista, embora esse não seja o lugar certo para essa prática. Hedonismo verdadeiro é sempre sair de lugares feios e com pessoas desinteressantes, mas como sou obrigado a passar mais alguns dias aqui, tenho me dedicado a encontrar o hedonismo dentro de um ambiente tão hostil a ele.

Aqui não é lugar para um hedonista desatento. As ruas são feias. O concreto e o asfalto estão por todo o lado. Os prédios são novos e de uma feiúra limpa. As pessoas têm a beleza do óbvio.

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Um hedonista perdido nessa cidade deve seguir o seguinte roteiro de fim de dia:

Munido de um aparelho de mp3 player com potentes amplificadores auriculares, dirigir-se ao ponto de ônibus do bairro São Cristovao em frente à Souza Cruz. Lá, por volta das 18:05, um ônibus da auto-viação Ereno Dörr, cuja linha se chama Carneirão, irá passar. Entre nesse ônibus. Note o sorriso aberto do motorista que se surpreenderá por não te conhecer, mas não se assuste. O sorriso desse simpático motorista é exceção à regra dos sorrisos lajeadenses. Esse sorriso carregará a alegria por levar em seu ônibus um passageiro desconhecido. Como quase nada em Lajeado, o motorista da linha Carneirão parecerá satisfeito e feliz ao ver um rosto incomum. 

Sente-se nos assentos mais altos para ter uma melhor visão da paisagem, mas não se assuste com o espaço diminuto reservado ao passageiro. Como tudo nessa cidade, o conforto sempre cede espaço à utilidade. Procure um som com forte batida eletrônica se não quiser ouvir as conversas dos outros passageiros. A menos que você ache graça do sotaque estranho ou ainda se divirta com a ignorância dos outros, eu aconselho sempre, como praticante do hedonismo, ouvir uma boa música. No meu caso tocava Fischerspooner.

Observe o “caos“ lajeadense às seis horas da tarde. Tudo será menos agressivo do que a música que você ouve. Imagine-se em algum filme europeu onde adolescentes inteligentes sentem a dor de existir em uma cidade que não os comporta. Sinta-se um alien. Seja você. Ou não seja você e seja uma figura do cinema. Um personagem que saltou da tela diretamente para o ônibus Carneirão. Ou imagine uma câmera captando cada mínimo movimento interno do seu olhar.

Em poucos minutos o ônibus terá cruzado a cidade. Logo você terá passado pelo famoso parque dos Dick (o maior parque da cidade onde rola o consumo das drogas mais pesadas ao ar livre), e avançará pelo casario histórico. A zona de prostituição e de tráfico. O coração da cidade. A sua parte mais íntima e mais bela. Guarde bem o local. É sempre interessante voltar à noite para abastecer-se de alegria.

Observe o que resta de um casario que, um dia, compôs a bela arquitetura de uma cidade em formação. Provavelmente, caso você tenha a má sorte de ser obrigado a voltar a essa cidade, menos casas antigas estarão aqui. Tudo o que é belo desaparece numa velocidade impressionante nesse lugar. Viver o presente e aproveitar cada gota de beleza. A meia dúzia de belas casas. Nada mais. O que tem. A cidade é administrada por governantes que não respeitam a sua história e a população parece ser conivente com essa filosofia. Respire o último ar de história e sinta-se testemunha de uma paisagem antes do fim.

Observe a praça da matriz, os meninos entrando no banheiro para consumir drogas ou para pegar no pau um do outro e sinta-se, novamente, em uma cidade européia. Não se assuste se todos forem loiros. Limpos. Belos. As doenças mais perigosas se escondem sob a pele mais bonita.

Observe o colégio estadual Presidente Castelo Branco. Observe a igreja católica. A última torre no centro da cidade que não foi descaracterizada por outdoors com publicidade. As torres da igreja católica podem ainda estar livres de interferências visuais, mas não comemore. É importante sempre saber que tudo na cidade está morrendo. Portanto observe tudo como quem visita um parente no leito de morte. Ou como quem percebe no rosto de uma criança os últimos traços da beleza. Ou como quem percebe no próprio rosto as primeiras marcas do tempo. Viva o instante presente. E não pense que cada metro de beleza está com os seus dias contados. Nossos cabelos irão desbotar e a pele de todos os rostos irá cair. A cidade envelhece tão rápido. Todos os paralelepípedos desaparecerão sob camadas de concreto. Todas as árvores darão lugar a coqueirinhos. Lajeado envelhece como quase todas as mulheres de hoje. Escondendo as mais belas marcas em cicatrizes mais expostas do que elas podem imaginar. Como as mulheres de hoje, a cidade cobre o que lhe expressa e expressa o que não é, o que nunca será. Não entende que o que não é, não será, assim como o que não foi, também não é.

Olhe para a paisagem sempre. E quando o ônibus passar por baixo do viaduto da BR 386, troque a vibração do seu ipod e procure algo como Chris Garneau, Carla Bruni, Devendra Banhart. Ou um jazz antigo. Ou David Bowie.

A paisagem natural que se sucederá pela próxima meia hora e o exuberante pôr-do-sol dispensam trilha sonora. Mas é sempre bom estar acompanhado de um belo som quando a paisagem nos falta o ar. Difícil vai ser você não saltar do ônibus e dançar entre as plantações como um servo do rei-sol. Estranho vai ser você não sentir ecos hippies aflorando dos lugares mais escondidos da sua alma. Impossível você não vislumbrar a felicidade dentro do percurso do Carneirão. O rio estará ao lado, durante a maior parte do trajeto. A brisa será fresca e a poeira será poesia.

Não pense no fim da viagem. E não pense que em breve essas terras serão de todos para ser de ninguém. Serão loteadas. A beleza dos trigais e dos campos de aveia serão condomínios cafonas como tudo o que é novo nessa cidade. Aproveite cada pedaço do paraíso sabendo que cada dia é um a menos. Que as nossas horas estão contadas e que o percurso chegará ao fim. A valorização mobiliária destruirá cada pedaço de beleza dessa parte da cidade e mais um cartão postal será queimado do mundo.

Se, no rápido trajeto, você tiver sentido cada raio do sol se pondo dentro de você, quando descer do ônibus e encarar novamente a feiúra da cidade,  o hedonismo dará lugar à indignação. Mas não. Não se indigne. Apesar do mau gosto os habitantes parecem satisfeitos. Fuja logo. Se a ignorância for vizinha da maldade é possível que você arda na fogueira dos sem cultura. Dos sem passado. Dos não história.

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O mundo à sua volta pode estar feio. Mas você não deve estar desatento ao incomum.

Um comentário:

Laura Peixoto disse...

lauraFiquei passada...
Complexo e simples.
Então tá: turismo em Carneiros.
Vou postar um trecho no meu blog.
Posso? assina? Indico a fonte?
RESPONDE!!!