quinta-feira, 25 de junho de 2009

brasília


quando o dia amanhece cinza e chuvoso convém sempre lembrar que é possivel fugir em direção ao sol. eu voei uma hora e meia para longe da chuva em direcao a um dia ensolarado e quente no planalto central. essa cidade sempre me surpreende por sua estranheza. eu me pergunto que tipo de pessoa pensou construir uma cidade assim? a pretensão de alguém que achou que podia criar a vida artificialmente. uma vida inabitavel. distâncias intransitáveis para pés descalços. os campos planos e verdes cortados por formas inusitadas, geométricas. anti-naturais. a coragem do homem querendo provar que a razão vence a natureza. que o cálculo preciso e a estrutura dos materiais podem superar a beleza de um pôr-do-sol. um projeto que se revela melancólico na fachada de um prédio sem janelas. há uma tese por trás de cada edifício. como se fosse possível viver só de argumentos. brasília é a materialização da modernidade. é uma maquete triste de um projeto belo e inacabado.
durante a reunião de hoje, enquanto eu olhava o horizonte pela janela de vidro, enquanto as carpas nadavam no lago artificial que cerca o edifício e o funcionário do cafezinho entrava na sala fazendo a louça tilintar de forma pouco sútil, um homem branco de barba aparada e terno bem passado contava que uma vez um índio bravo lhe apontou uma flecha para que seu argumento contra a construção de uma hidrelétrica fosse ouvido: os peixes não podem morrer, porque os peixes seguram o rio. e o rio segura o céu. e é o céu que segura o mundo. então sem os peixes, o mundo vai acabar. o índio sabe que nunca será ouvido sem a flecha. e que a flecha já perdeu a batalha para a pólvora há muito tempo.
no pulso esquerdo bang-bang.
agora eu volto para a cidade de céu cinza. não se pode ficar muito tempo acima das nuvens, onde sempre há sol. essa é a nossa condição na terra. acabo de saber que michael jackson morreu. o homem que havia dominado a natureza sucumbe a ela.
o horizonte alaranjado sempre está nos esperando ao fim de cada dia. mesmo que não possamos olhar para ele. mesmo que não queiramos olhar para ele.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

segunda-feira ao sol.

hoje a moça da padaria disse que um dos meus olhos estava menor que o outro. e me perguntou se havia acontecido algo. eu achei que pudesse ser terçol. um doença que eu nunca tive, mas sempre tive medo de pegar na escola. depois me lembrei que talvez pudesse ser o olho inchado depois da noite de ontem. em uma noite triste e fria de domingo sempre se corre o risco de chorar. mas eu me pergunto se é possível que eu tenha chorado mais com o olho direito do que com o esquerdo. e se isso pode fazer alguma diferença no tipo de choro que a gente chora. assim como há diferença quando se chora de alegria ou de tristeza. eu pensei em prestar atenção da próxima vez para ver se eu choro porções equânimes de lágrimas por cada olho ou não. eu não acho ruim acumular conhecimento sobre esse tema. é como aprender a se agasalhar no inverno. compressa de algodão com camomila diminui o inchaço do olho e deixa um cheirinho bom na pele. sempre há espaço para que pequenos prazeres sobrevivam em períodos ruins. talvez eu tenha dormido com o livro colado no lado direito do meu rosto e apenas não havia ninguém aqui para colocar o livro na mesa de cabeceira depois que eu pegasse no sono. mas eu não me importei com o comentário dela. nada mais pode me atingir depois que descobri aos trinta anos que sofro de um leve estrabismo. que dependendo do dia pode se tornar grave e notável. aos trinta anos eu também descobri que queria aprender a tocar piano e hoje fui à escola de música para fazer a primeira gravação de eu tocando. toquei três musicas. errei a segunda parte da última delas e pedi para voltar. gravei de novo e deu tudo certo. tocar certo aquelas três musicas era o melhor que podia acontecer no dia de hoje. e no final aconteceu. as manhãs de segunda-feira sempre são melhores que as noites de domingo. a espera é sempre pior do que o que realmente é quando o que realmente é chega. ou pelo menos quando chega aquilo que pensamos ser o que realmente é. de qualquer modo, a questão é que não vale a pena sofrer por antecipação. e muito menos tentar prevenir o sofrimento. prevenir um sofrimento é fazê-lo existir apenas com a força da imaginação. e uma vez que ele existe, daí você é obrigado a sofrê-lo. prevenir é não dar a chance para que o sofrimento não apareça. é antecipar a dor só porque não se consegue conviver com a incerteza. mas é impossível fugir da dúvida nos dias de hoje. sobrevivemos ao fim das tradições e das religiões e à destruição de todas as certezas da ciência. ou seja, nada é capaz de explicar o que vivemos. e aprender a conviver com a incerteza provavelmente será a única vantagem evolutiva importante deste século. eu já não ouço passarinhos às segundas-feiras. do meu novo quarto eu ouço o barulho da rua começando cedo e as pessoas saindo de suas casas para irem trabalhar. para um passarinho voar, ele precisa da asa certa, da pressão certa e do ângulo certo e eu acho que a essas pessoas só faz falta o ângulo certo. muita coisa no mundo depende dos ângulos, mas eu nunca mais tive um compasso no estojo desde o terceiro colegial. não ter um compasso no estojo é o mesmo que não ter mais um relógio de pulso. é olhar de frente o desconhecido e não ter medo de ser fotografado. a beleza é apenas uma questão de estar no ângulo certo quando se é fotografado. eu procuro um resto de calor no cobertor enquanto posso dormir mais um pouco. depois saio andando no sol até a padaria e a semana já não me assusta. é bem capaz que o tamanho dos meus olhos tenha se equalizado depois do café. quando eu tomo o meu primeiro café do dia é como se o meu cérebro inchasse de tamanho. como uma bexiga murcha recebendo ar. a professora de piano disse que vai me passar o arquivo da minha gravação em mp3 na semana que vem e eu fiquei ansiosa. o garoto que iria entrar para gravar depois de mim devia ter uns dez anos e estava tão impaciente quanto eu. naquele momento não havia diferença alguma entre eu e o garoto de dez anos. inclusive nós dois usávamos moletons azul marinho de zíper e carregávamos o mesmo livro. eu queria saber se ele iria tocar a música 21 e 22, assim como eu, mas acabei ficando com vergonha de perguntar. de qualquer modo, tecnicamente estávamos ali pelo mesmo motivo. é muito bom saber que se pode ter dez anos de novo aos trinta. é como nascer de novo já com dentes e sabendo falar. dessa vez eu nasci sem medo de errar. eu não liguei de ter errado a segunda parte da última musica. não haverá conseqüências. a professora disse que vai editar a gravação e eu vou ficar só com a parte boa. errar é como sentir o terreno. deslizar a mão para fora da janela para ver se agüentaremos o frio. e ficar com a parte boa no final.

domingo, 21 de junho de 2009

sunday sadness


é domingo à noite de novo. e eu penso que as noites de domingo não deveriam existir. agora somos apenas pequenas bolhas de solidão espalhadas no espaço. cada um de nós tentando se esconder da escuridão embaixo da luz amarela de uma luminária de mesa. cada um de nós tentando se esconder do silêncio no som que vem do shuffle de nossos ipods. cada um de nós tentando se esconder do vazio nas lembranças de um dia em que fomos felizes. cada um de nós tentando encontrar sentido para as horas de insônia nas telas brancas de nossos computadores. se temos tudo isso em comum, porque então não estamos juntos agora? vc diz que estar junto não é físico e eu preciso acreditar nisso. desafiar a matéria e torcer para esse pensamento não me abandonar nesta noite fria de domingo. eu fecho os olhos e paro de respirar até esta noite passar. ou até o próximo vento me arrastar em sua direção.

sentimental journey ou o ponto final do terminal pirituba

O relógio da cozinha parou. Diz que são onze da noite. Mas eu sei que muita coisa aconteceu desde que o ponteiro chegou às onze e resolveu ficar. A vela queimou até metade. As garrafas se esvaziaram. Ouvimos todos os vinis novos. E mais uma vez os vinis velhos. A voz de Janis nos visitou muitas vezes. Eu tenho a impressão de que viramos o disco mais de uma vez sem perceber. Em um movimento inconsciente de apego. Porque quando temos medo de nos despedir é sempre bom acreditar que há um lado a mais a ser ouvido. Depois a fumaça do nosso cigarro inundou o espaço que fica entre a luz vermelha e as nossas cabeças e nosso raciocínio percorreu caminhos novos e nos fez rir de coisas que já não lembramos mais. Já deve passar de quatro. Vocês acabaram de ir embora. Uma despedida que não deveria ter acontecido e eu não estou com sono. Eu já tive sono nesta noite, quando meus olhos quase fecharam e eu vi vc desaparecendo na minha frente. Mas eu já entendi que o movimento do sono chegando até nós não é linear, nem constante. Eu decido lavar a louça e dessa vez isso não é um ato de auto-destruição ou tendente a suscitar comiseracão. Não há ninguém aqui para me ver lavando a louça e dizer para eu deixar para amanhã Eu simplesmente quis lavar a louça. Sentir a água fresca escorrendo pelos dedos. A sensação boa da louca limpa se acumulando do lado esquerdo da pia. Escolhi Smiths. Lavar a louça ouvindo Smiths no meio da madrugada de uma noite fria era o melhor que eu podia fazer. Era tudo o que eu tinha e não me pareceu pouco. Todas as músicas desse disco são boas. Eu o ouço desde que tenho 14 anos e por isso já não há surpresas. Eu me reconforto ao ouvir essa voz triste mais uma vez. O caminho que a agulha faz no disco é o mesmo, mas o som saindo da caixa já não encontra as mesmas coisas. Quando chega até mim, percorreu outros caminhos, tocou outras superfícies e carrega uma poeira nova, de outra cor. If it’s not love, then it’s the bomb that will bring us together. A frase censurada é dita mais uma vez. Ela explica muito mais que a guerra fria ou o terrorismo. E eu penso que o amor não consegue mesmo manter pessoas juntas por muito tempo. Isso é uma realidade. A minha realidade agora é ouvir Smiths, terminar calmamente a louça, folhear um livro, fazer um chá e decidir escrever. Aqui nesta casa é como se fosse quatro da tarde. O relógio da cozinha está parado mesmo e eu posso inventar as horas. Eu entendi recentemente que a divisão do tempo em horas é arbitrária e não deveria ter tanto significado em nossas vidas. Eu descobri faz pouco tempo que as horas foram uma invenção dos monges beneditinos, que queriam criar uma disciplina rígida para o trabalho deles no mosteiro. E isso me fez finalmente entender que devemos viver menos como monges beneditinos e seguir mais o nosso próprio tempo. Saber a hora é querer uma segurança que não existe. O meu relógio de pulso quebrou e eu quase perdi o rumo há um mês atrás. Viver sob a falsa impressão de que há um rumo a ser seguido e uma hora certa a se chegar em algum lugar é repetir uma lição que deve estar em algum dos contos dos irmãos Grimm. E devemos sempre duvidar das lições dos irmãos Grimm. Mas só agora estou me acostumando com a incerteza. Acho que acabamos nos acostumando com tudo e isso deve ser uma vantagem evolutiva da nossa espécie. A pior parte é conviver com a memória. Seria tudo mais fácil se ela não existisse. A memória é ao mesmo tempo o pior e o melhor de nossas vidas. Eu não sentiria saudades, se simplesmente não me lembrasse. O firefox forecast pula na minha tela e me diz o tempo em Freiburg. Eu nunca mudei o aplicativo do meu computador desde que voltei de lá e isso já faz quase seis meses. É uma forma de viver um pouco a vida de lá. É uma forma de viver um pouco a vida que eu já vivi. Há uma densa neblina no céu de Freiburg neste momento e eu sou apenas uma garota mal agasalhada voltando para casa de bicicleta no meio da madrugada. O meu rosto cortando o vento gelado. As minhas mãos congelando no guidão e o silencio da floresta atrás de mim. Aqui o Terminal Pirituba passa mais uma vez. Praticamente vazio, sem se dar conta. Será que algum dia o Terminal Pirituba vai se cansar de dar voltas pela cidade vazia e vai resolver parar, assim como o ponteiro do relógio? Será que algum dia perceberemos que fazemos movimentos inúteis e pararemos sem mais? Eu me lembro do corredor iluminado com luz fria, os quatro andares de escada e o carpete verde do meu quarto. As nossas colagens tentando dar algum sentido para a existência daquelas paredes brancas. Lembrar dessas noites frias é melhor do que vivê-las. E eu decido que chegou a hora de mudar de uma vez por todas a programação do aplicativo da previsão do tempo. Eu quero que ele me diga que temperatura faz aqui e agora. Eu acabo de entender que não faz sentido habitar a memória. Porque agora faz 14 graus nesta cidade e é aqui que eu vivo. Aqui sou só eu, a minha louça lavada, o aquecedor que exala um vento quente na minha cara e a minha xícara fumegante de chá de camomila. Agora sou só eu ouvindo Smiths na sala da minha casa e o barulho do Terminal Pirituba passando ao fundo. Agora eu entendo o que a Janis realmente quis dizer quando entrou mais de uma vez nesta sala para cantar que freedom's just another word for nothing left to lose.

sexta-feira, 12 de junho de 2009

mude-se

renda-se, como eu me rendi. mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei. não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento.

domingo, 7 de junho de 2009

Todas as noite de domingo te fazem mentir. A lua estava bonita na noite de hoje, mas quase ninguém viu. Você também não viu. Não. Não é para você que estou falando. Não leve tudo tão a serio e não dê tanta importância para as certezas da vida. 
O final de domingo pode ser um suspiro. Como agüentar submerso o sufoco de um fim de semana. “Não espere tudo da lua” – ela é muito mais maléfica do que a gente podia imaginar.
É que simplesmente eu acho que precisamos comemorar tudo o que temos para comemorar. É uma questão de foco. Mas às vezes a lua cheia mostra o seu lado negro, e aí não tem o que fazer.
Talvez seja uma questão de respeito a ela na primeira noite em que ela chega. Ela precisa de muita atenção. Assim vou compreendendo um pouco mais sobre os rituais que você um dia fez. Deveríamos prestar mais atenção aos rituais para onde fomos jogados. Talvez eles não sejam tão fúteis assim. Talvez ele tenham te tornado refém. A lua usa artimanhas inesperadas para conquistar seguidores.
Nas noite de lua cheia é emanar uma sensação de quando ela for boa.
Você reparou as pessoas na noite de hoje?
Alguma coisa estava diferente, mas nós estávamos preparados.
No topo do hotel as janelas ofuscavam a cidade à nossa volta. As torres de alta tensão no topo da paulista. O vento gelado. O Ibirapuera quase ao lado.
Nos abraçamos vitoriosos de mais um ciclo. Quando olhamos para o alto, no meio do céu, ela flutuava. Um mar de nuvens brancas prestes a engoli-la por inteira. Quando a primeira nuvem explodir de calor, o mundo terá chegado ao fim.
Qual será a real função de um visionário?
Qual será o motivo de um filme bom?
É preciso organizar os armários. Jogar fora as roupas desnecessárias. Os olhares sem significado. As palavras que não deviam ser ditas. Mas para onde vão as roupas que não queremos mais usar? Por que todas as nossas roupas foram usadas por alguém antes de nós?
Mas de vez em quando as nossas mesas encontram sentido. As vozes ganham volume e os copos encontram sentido. Depois os gelos derretem. Os guardanapos derretem. Os olhares caem para as próprias mãos esfregando os dedos para não congelar. Nem tudo o que é sólido pode derreter. Não superestime as pessoas à nossa volta.
A bíblia que eles escrevem tem as letras de neon. Estamos longe no espaço. Não no tempo. O tempo é sempre maior do que tudo. 

terça-feira, 2 de junho de 2009

winnipeg, colorado






há um vôo saindo para winnipeg vinte e cinco minutos depois do meu. e eu me pergunto se winnipeg existe no mapa ou se é apenas o nome genérico desse tipo de cidade que eu ando gostando de visitar ultimamente. cidades pequenas, situadas no interior de algum estado de importância geográfica secundaria, de onde eu posso ver campos alaranjados, plantações e horizonte cor de rosa no final da tarde. onde o ar é mais limpo e o céu mais claro. onde se pode andar em caminhos de terra traçados entre as árvores até um pico de onde se vê o vale, a cidade bem pequena ao fundo, um conjunto de montanhas à direita e o sol se ponto à esquerda. é como se houvesse uma passagem secreta ligando todos esses lugares, de onde se pode passar diretamente de um hemisfério ao outro como se estivéssemos navegando em uma conexão rápida de internet. não que eu ache que isso seja algo sobrenatural. eu apenas acredito no poder do silêncio e do relaxamento das pupilas para nos levar para bem perto de nós mesmos.

eu poderia entrar nesse avião que vai para winnipeg ou em qualquer um dos vôos que partem deste aeroporto internacional na próxima hora. eu poderia passar alguns dias em qualquer que seja o lugar para onde eles me levem. eu poderia ficar aqui e ir amanhã ao show ao ar livre do leonard cohen no red rock amphitheatre. ou esperar o the killers tocar aqui no próximo mês e no meio tempo tentar subir em mais um dos 55 picos ao redor de denver. também não seria difícil voltar para nyc só para ver a pj harvey no beacon theatre na semana que vem. há vôos para lá em todas as horas pares. as pessoas embarcando no portão ao lado estarão em frankfurt amanhã. poucas horas a separam de um passeio no fim da tarde ao longo do rio main ou de um dia calmo em uma das bibliotecas públicas mais lindas que eu já conheci. estar em um aeroporto te faz lembrar da quantidade enorme de opções de lugares para passar os próximos dias. talvez seja recomendável que visitemos um aeroporto internacional de vez em quando. as pessoas andam apressadas de um lado para o outro. o soldado americano carregando sua mochila imensa caminha com o orgulho de um derrotado. e eu penso que se eu escolhi entrar nesse vôo que sai em dez minutos para washington e depois me levará direto para são paulo é porque eu escolhi abrir mão do leonard cohen tocando ao ar livre em plena primavera no meio das montanhas vermelhas, do killers, da pj harvey, do rio main e da biblioteca pública cheia de vidros de onde se vê o jardim florido. e isso quer dizer que realmente tem que valer a pena voltar.

o aeroporto internacional de denver fica a quarenta minutos da cidade e no meio de um campo quase desértico. é um deserto em sentido técnico, mas não é um deserto de areia como imaginamos toda a vez que pronunciamos essa palavra. o prédio do aeroporto é uma estrutura metálica que surge de repente no meio de um campo amarelo e interrompe a seqüência infinita de nuvens brancas no céu azul turquesa. é certamente um estranho para a arquitetura local feita de estábulos de madeira escura e povoada prioritariamente por cavalos e búfalos. há pássaros cortando o céu, mas eu não sei se eles vivem aqui ou estão de passagem. além de mim, do motorista do táxi e dos passageiros que ocupavam os poucos carros que nos ultrapassaram no caminho, eu não vi mais nenhum ser humano ocupando essa paisagem infinita. é possível que o deserto invada o aeroporto em bem pouco tempo. o vento aos poucos traria a terra para dentro desse saguão e ela se acumularia a partir dos cantos, com a conivência das faxineiras mexicanas. eu acho que de alguma forma isso já começou a acontecer porque qualquer um que se sentar em uma das cadeiras da área de embarque do terminal b e olhar para cima verá que os passarinhos já tomaram esse prédio de carpete cinza, vidros fume e ar condicionado controlando a temperatura ambiente. eles voam calmamente de um saguão para o outro, pousam nas cadeiras ao lado da janela, alimentam-se das migalhas que as crianças deixam cair de seus sanduíches e eventualmente cantam. às vezes eles deixam escapar um som tão alto que podem ser confundidos com o som do alto falante. mas por enquanto poucas pessoas parecem notar essa ocupação silenciosa. em dez dias, essa é a primeira exceção que eu encontro a algo que se pode denominar uma terra sem sutilezas. e não me surpreende o fato de que ela não tenha nada a ver com a civilização local.

se vc algum dia vier para denver, colorado, entenderá exatamente o que é a ausência de meio-tons. tudo aqui funciona por contraste, como o clima no deserto. você morrerá de calor e sede durante o dia e quando sair na rua à noite usando roupas leves vai sentir o seu corpo realmente congelando. no primeiro dia vai entender que é assim que funciona o clima no deserto e que todo o resto segue exatamente a mesma dinâmica. essa parece ser a regra básica para se acostumar com esse lugar: tudo muda muito rápido e drasticamente. o dia pode amanhecer azul e em menos de meia hora chover uma tempestade cinza escura com raios e trovões. e o sol certamente voltará a aparecer em menos de um quarto de hora depois que as últimas gotas de chuva cairem. se você andar pela cidade, vai cruzar cowboys autênticos e cinco minutos depois quase ser atropelado por um garoto de boné, calça baixa e camiseta surrada com a estampa de uma banda indie rock andando de skate pela calçada de cimento. alguns bares estarão cheios, haverá musica alta, pessoas bebendo cerveja e rindo alto e um bloco adiante a rua estará absolutamente vazia e quieta como se a cidade toda já estivesse dormindo. há muito vento por aqui. e muitas mudanças podem vir com o vento. ou com as empresas de petróleo. ou com as políticas de desenvolvimento regional. gary me explicou que recentemente houve uma tax policy do governo do estado que fez com que muitas empresas se mudassem da califórnia para cá. empresas de tecnologia e de energia, que aparentemente impactaram a economia local anteriormente movida por agricultura e pecuária. parece que desde que o ouro daqui acabou, no século dezenove, nada de muito significativo havia acontecido, exceto os filmes de john wayne. mas agora denver tem um centro financeiro com prédios altos de vidros espelhados, lojas de marcas internacionais e homens de terno circulando apressadamente pelas ruas durante os horários comerciais. mas se vc se afastar desses quarteirões chiques e andar dez quadras até a 7th street vai encontrar um bairro inteiro com prédios velhos de tijolos marrons corroídos e bares que se chamam shelby’s ou the fainting goat. e vai ver que o western e os búfalos ainda estão na raiz desse lugar. vai conversar com gente que conta que pela manhã seus cachorros quase foram comidos pelos coyotes. pessoas que não tomam banho há algum tempo e que vão te contar sobre os shows de rock que elas presenciaram no final dos anos 60, quando grateful dead e jefferson airplane tocaram no teatro a céu aberto. você vai ver mulheres negras obesas, com quadris enormes, ainda que as estatísticas nacionais digam que o colorado é o estado americano com a menor proporção de obesos na população. você certamente simpatizará com os ídolos e mitos locais: o índio sioux, o cowboy que masca um pedaço de grama no canto da boca e o astronauta john jack que pisou na lua pela primeira vez. você vai acabar achando que o colorado tem muito mais a ver com a cidade de onde você veio do que você imagina. eles também comem muita carne e bebem em excesso. vomitam na calçada, andam de carro e terminam a noite vendo o sol nascer em algum dos morros que rodeiam a cidade. sentindo-se tão reais quanto o ar frio da manhã.