domingo, 21 de junho de 2009

sentimental journey ou o ponto final do terminal pirituba

O relógio da cozinha parou. Diz que são onze da noite. Mas eu sei que muita coisa aconteceu desde que o ponteiro chegou às onze e resolveu ficar. A vela queimou até metade. As garrafas se esvaziaram. Ouvimos todos os vinis novos. E mais uma vez os vinis velhos. A voz de Janis nos visitou muitas vezes. Eu tenho a impressão de que viramos o disco mais de uma vez sem perceber. Em um movimento inconsciente de apego. Porque quando temos medo de nos despedir é sempre bom acreditar que há um lado a mais a ser ouvido. Depois a fumaça do nosso cigarro inundou o espaço que fica entre a luz vermelha e as nossas cabeças e nosso raciocínio percorreu caminhos novos e nos fez rir de coisas que já não lembramos mais. Já deve passar de quatro. Vocês acabaram de ir embora. Uma despedida que não deveria ter acontecido e eu não estou com sono. Eu já tive sono nesta noite, quando meus olhos quase fecharam e eu vi vc desaparecendo na minha frente. Mas eu já entendi que o movimento do sono chegando até nós não é linear, nem constante. Eu decido lavar a louça e dessa vez isso não é um ato de auto-destruição ou tendente a suscitar comiseracão. Não há ninguém aqui para me ver lavando a louça e dizer para eu deixar para amanhã Eu simplesmente quis lavar a louça. Sentir a água fresca escorrendo pelos dedos. A sensação boa da louca limpa se acumulando do lado esquerdo da pia. Escolhi Smiths. Lavar a louça ouvindo Smiths no meio da madrugada de uma noite fria era o melhor que eu podia fazer. Era tudo o que eu tinha e não me pareceu pouco. Todas as músicas desse disco são boas. Eu o ouço desde que tenho 14 anos e por isso já não há surpresas. Eu me reconforto ao ouvir essa voz triste mais uma vez. O caminho que a agulha faz no disco é o mesmo, mas o som saindo da caixa já não encontra as mesmas coisas. Quando chega até mim, percorreu outros caminhos, tocou outras superfícies e carrega uma poeira nova, de outra cor. If it’s not love, then it’s the bomb that will bring us together. A frase censurada é dita mais uma vez. Ela explica muito mais que a guerra fria ou o terrorismo. E eu penso que o amor não consegue mesmo manter pessoas juntas por muito tempo. Isso é uma realidade. A minha realidade agora é ouvir Smiths, terminar calmamente a louça, folhear um livro, fazer um chá e decidir escrever. Aqui nesta casa é como se fosse quatro da tarde. O relógio da cozinha está parado mesmo e eu posso inventar as horas. Eu entendi recentemente que a divisão do tempo em horas é arbitrária e não deveria ter tanto significado em nossas vidas. Eu descobri faz pouco tempo que as horas foram uma invenção dos monges beneditinos, que queriam criar uma disciplina rígida para o trabalho deles no mosteiro. E isso me fez finalmente entender que devemos viver menos como monges beneditinos e seguir mais o nosso próprio tempo. Saber a hora é querer uma segurança que não existe. O meu relógio de pulso quebrou e eu quase perdi o rumo há um mês atrás. Viver sob a falsa impressão de que há um rumo a ser seguido e uma hora certa a se chegar em algum lugar é repetir uma lição que deve estar em algum dos contos dos irmãos Grimm. E devemos sempre duvidar das lições dos irmãos Grimm. Mas só agora estou me acostumando com a incerteza. Acho que acabamos nos acostumando com tudo e isso deve ser uma vantagem evolutiva da nossa espécie. A pior parte é conviver com a memória. Seria tudo mais fácil se ela não existisse. A memória é ao mesmo tempo o pior e o melhor de nossas vidas. Eu não sentiria saudades, se simplesmente não me lembrasse. O firefox forecast pula na minha tela e me diz o tempo em Freiburg. Eu nunca mudei o aplicativo do meu computador desde que voltei de lá e isso já faz quase seis meses. É uma forma de viver um pouco a vida de lá. É uma forma de viver um pouco a vida que eu já vivi. Há uma densa neblina no céu de Freiburg neste momento e eu sou apenas uma garota mal agasalhada voltando para casa de bicicleta no meio da madrugada. O meu rosto cortando o vento gelado. As minhas mãos congelando no guidão e o silencio da floresta atrás de mim. Aqui o Terminal Pirituba passa mais uma vez. Praticamente vazio, sem se dar conta. Será que algum dia o Terminal Pirituba vai se cansar de dar voltas pela cidade vazia e vai resolver parar, assim como o ponteiro do relógio? Será que algum dia perceberemos que fazemos movimentos inúteis e pararemos sem mais? Eu me lembro do corredor iluminado com luz fria, os quatro andares de escada e o carpete verde do meu quarto. As nossas colagens tentando dar algum sentido para a existência daquelas paredes brancas. Lembrar dessas noites frias é melhor do que vivê-las. E eu decido que chegou a hora de mudar de uma vez por todas a programação do aplicativo da previsão do tempo. Eu quero que ele me diga que temperatura faz aqui e agora. Eu acabo de entender que não faz sentido habitar a memória. Porque agora faz 14 graus nesta cidade e é aqui que eu vivo. Aqui sou só eu, a minha louça lavada, o aquecedor que exala um vento quente na minha cara e a minha xícara fumegante de chá de camomila. Agora sou só eu ouvindo Smiths na sala da minha casa e o barulho do Terminal Pirituba passando ao fundo. Agora eu entendo o que a Janis realmente quis dizer quando entrou mais de uma vez nesta sala para cantar que freedom's just another word for nothing left to lose.

Nenhum comentário: