sexta-feira, 17 de abril de 2009

fear


Agora eu estou apenas me sentindo a pessoa mais sozinha do mundo e começando a entender que é assim que vai ser. E tudo o que eu sinto é uma espécie de nostalgia da semana passada. Poucas coisas são irreversíveis e acho que uma delas é quando você entende algo. Não é possível mais esquecer. Como aqueles desenhos que a professora de educação artística mostrava para falar de semiótica. Se nos esforçássemos para olhá-los sob ângulos diferentes, conseguiríamos reconhecer ali uma determinada imagem (eu até hoje me lembro de um que era uma velha enrugada e com um chapéu esquisito e, se virássemos a folha de ponta-cabeça, uma garota). Quem conseguia ver essas imagens fazendo sentido pela primeira vez, nunca mais conseguia desviar o olhar delas. Aquilo nunca mais voltava a ser um emaranhado de linhas qualquer. A inocência quando se perde, não podemos recuperar. Eu tenho nostalgia da semana passada. Da inocência perdida. De um passado tão recente e que parece tão inalcançável agora. O momento em que tínhamos ainda o fim de semana inteiro pela frente. Você me levaria para conhecer todos os seus lugares. Mataríamos as saudades. Apenas um passeio com meu melhor amigo. O dia em que peguei o avião para visitar você e não sabia que encontraria a minha própria escuridão vagando nos bosques alaranjados da sua cidade. As risadas descomprometidas, as músicas que ouviríamos e cantaríamos e dançaríamos. Eu não achei que iria morrer.
Quando você me levou para conhecer a ponte, eu já sabia muitas das histórias que ela guarda. Mas nunca pensei que eu própria poderia cair dela. Arrebentar o meu corpo na água verde que reflete a ferragem de cor cobre. Engolir um pouco da água contaminada pela sujeira química. Eu me pergunto porque tanta gente foi atraída para baixo. Tantas mortes não acidentais. Penso inutilmente nas causas. Em quantas pessoas já puderam enxergar melhor quando a neblina branca se dissipou e o sol nasceu no céu cor-de-rosa. Quantas vidas deixaram de ser reais quando contrastadas com essa luz. Quantos quiseram se sentir tão livres quanto os pássaros que cruzavam o céu naquele momento. Ou simplesmente desaparecer naquela paisagem feita para que os humanos se sintam intrusos. A luz natural penetrando nas retinas e curando os defeitos da vista. A violência com que ela entra nos olhos acostumados com a noite e com a sombra. Talvez queimando algo que só perceberemos quando ficarmos velhos e formos progressivamente perdendo a visão. Eu me lembro do momento em que as risadas silenciaram. O momento em que a vodka já não fazia mais efeito e eu não me sentia mais nem alegre, nem tonta. Os olhares que deixaram de ser cúmplices. As solidões de cada um de nós se separando. Os contornos se tornando nítidos. O cinza virando cor. Eu podia cruzar toda a ponte me equilibrando no caminho traçado pela viga de madeira. Meus pés em movimentos premeditados. A estranha sensação de me sentir demasiadamente sóbria. E a calma de descobrir que tivemos o suficiente. E que o suficiente é suficiente. A opressão que sempre sinto diante das paisagens naturais dessa vez me fazia feliz. Me mostrava que talvez não houvesse muita diferença entre ir ou ficar. Que ninguém se importaria. E que isso não era ruim. Que algumas coisas são mais simples do que imaginamos e que nem sempre podemos decidir sobre tudo. Há decisões que já foram tomadas e ouvir a verdade nem sempre machuca. Agora eu vivo sob a luz daquele sol que não me deixa esquecer das cores que eu vi naquele amanhecer. Que não me deixa ajustar o controle da máquina fotográfica, para voltar a tirar fotos em variações de cinza. A neblina que não torna a aparecer e que já não me protege mais. Os meus olhos agora estão cansados de ver. Eu preciso dormir e tentar sonhar um pouco. Com sorte, sonharei com o passado. Eu queria que alguém me protegesse enquanto eu durmo. Que algum quero-quero pousasse sobre a minha cabeça e a protegesse como se fosse seu ninho. Eu queria ter a sombra da árvore solitária que fica no meio do milharal. Mas hoje eu sou a árvore. Eu sou o pássaro que não tem mais o que vigiar. E que mesmo assim permanece imóvel.

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