sábado, 4 de abril de 2009

house of cards

Eu escrevi até o limite do meu cinismo. E tenho vontade de vomitar quando penso nas palavras espalhadas tecnocraticamente pelas quatrocentas e treze folhas de papel, que provavelmente nunca serão lidas. Nunca virão a ser comunicação. Eu acho cada vez mais difícil acreditar em mim quando o que eu digo pretende seguir a linha de um discurso racional. Palavras colocadas lado a lado com um objetivo definido. Eu já não acredito mais nisso. E eu acho que tudo começou quando estávamos sentados aí nesse café. Você de costas para a parede rabiscada, me perguntava o que eu entendia por racional e eu fiquei muda. Sem saber responder. A sua expressão poderia ser ao mesmo tempo a de quem estava fazendo uma pergunta sincera ou a de quem só estava socraticamente me fazendo enxergar algo. Descobrir por mim mesma. Eu tenho certeza que se tratava do segundo caso e talvez tenha sido um ato seu de generosidade ou amor. Ou pena. Você querendo que eu entendesse algo que já havia entendido. E que poderia mudar a minha vida para melhor. Me dei conta de que eu estava habitando uma casa feita de cartas. Maior do que eu preciso. Com muitos banheiros. Quase todo o ocidente habitando essa construção a ponto de desabar. Olhava para os rabiscos da parede e chegava à conclusão de que não havia diferença entre eles e os livros da estante. E o dono dessa livraria, assim como você, já devia saber de tudo. Por isso deixou que as pessoas rabiscassem a parede. E manteve o segredo na vitrine de vidro fechada, onde são guardados os cds importados. Coisas que não são mais compradas. Compartimentos raramente abertos. A razão é só mais uma religião que perde o poder de explicar o mundo. Deixa de ser factível no momento em que olhamos em volta e vemos o primeiro cachorro atravessando a rua como se fosse gente. Aquele momento no café não tem mais volta. Não há mais como recuperar a inocência.
Agora as minhas mãos doem de tendinite. Eu sentada no sofá assistindo a alguma coisa já começada na tv. Um concurso de truques de mágica. Um mágico jovem e sua nova assistente. É legal pegar filmes começados e tentar imaginar o que aconteceu antes. Eles são claramente um casal em uma conversação amorosa, vestidos em roupas ridículas de mágico e assistente de mágico. Um universo tão estranho quanto o dos anões, Ele, apaixonado, revela que degolou sua esposa há menos de um ano no número da guilhotina. Seus olhos cheios de lágrima, a voz embargada. Sua vida destruída. E só agora percebera que poderia seguir vivendo, apesar do episódio. Um novo amor. Mas ele temia que a nova assistente/amante o abandonasse assim que soubesse do precedente. Sua vida estaria novamente arrasada. Daí a tensão daquele momento. E ela diz: - Não, eu não vou te deixar. Eu fico mais tranqüila agora em saber que isso aconteceu, pois um raio nunca cai duas vezes no mesmo lugar. E ele, quase nada aliviado, diz que na verdade é possível demonstrar matematicamente que isso pode acontecer. O raio pode cair sim duas vezes no mesmo lugar. Ele não consegue se render à ignorância do argumento dela. Evoca a prova matemática para fundamentar sua própria desgraça. Os seriados da tv às vezes surpreendem.
Eu vejo você aí sentado de costas para a mesma parede e é como se de novo estivesse me mandando o mesmo recado. Liberte-se das armadilhas da razão. Lembre-se do tempo que estávamos nus e andávamos descalça na rua. E não tínhamos ainda construído nossa casa.

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