domingo, 21 de março de 2010

rubber soul



eu olho para o porta-retrato que fica na estante em cima do som e vejo a foto antiga da minha mãe. eu gosto dessa foto. não só porque é a foto da minha mãe, mas porque ela tem uma composição que faz muito sentido prá mim esteticamente. ou porque eu devo ter achado legal ver as duas coisas juntas. por isso resgatei ela do meio da bagunça da mudança e a botei no porta-retrato vazio. eu acho que a garota da foto já era minha mãe e isso quer dizer que essa foto já é bem antiga. as cores têm uma harmonia lavada. o verde envelhecido da grama combina com o maiô vinho-quase-marrom que ela está usando. ela está sentada na grama e tem uma árvore cortada atrás dela. o toco da árvore em tese não combinaria com a felicidade dela. nem com o sorriso doce, nem com o boné branco que ela está usando, que dá um tom meio inocente para a cena. acho que hoje em dia ninguém ia querer tirar uma foto ao lado de uma árvore cortada. mas eles viram a beleza desse objeto quase morto. ou nem se preocuparam com a paisagem atrás. é bem possível que quem tenha tirado a foto - talvez meu pai, talvez meu tio - estivesse tão consumido pela beleza da garota, que não prestou mais atenção em nada. eles provavelmente estão no que meus pais chamam de "o clube fiscal". eu não me lembro de ter estado, mas eles dizem que a gente sempre passava os fins de semana lá com os meus tios quando eu era criança. e que minha tia cozinhava empanadas para levar. eu sempre achei o nome desse clube meio estranho, mas depois de grande eu me liguei que "o clube fiscal" devia ser o jeito abreviado de dizer que o clube era de alguma associação de fiscais. tipo fiscais do imposto de renda. meus pais não são fiscais. qualquer dia vou perguntar a eles porque conseguiam frequentar o clube. é provável que eles tivessem algum amigo fiscal. se eu me lembrasse, eu teria nostalgia desse tempo em que passávamos os domingos fazendo pic-nic no clube fiscal. um grupo de amigos saindo de são paulo em caravana, levando comida caseira e filhos para passar um dia no sol. era o tempo dos corcéis. eu sei que meu pai teve um corcel I vermelho e depois um corcel II verde claro. eu só me lembro do segundo e na minha cabeça ele tinha umas marcas de ferrugem perto do porta-malas, o que quer dizer que minha memória só chega a alcançar o tempo em que o carro já estava velho. a ford produziu corcéis no brasil entre 68 e 86. eu nasci numa época em que ainda se produziam corcéis no brasil e isso já é o suficiente para definir uma geração. quando eu olho bem para o rosto da minha mãe nessa foto, eu sempre acho ela meio parecida com o john lennon na capa do rubber soul. a diferença é que ela está sorrindo e ele não. a árvore atrás dele tem galhos e folhas e a que está atrás dela não. ela está sozinha no meio da foto e ele também.

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