domingo, 23 de novembro de 2008

A woman left lonely



Ela me perguntava se tinha pronunciado meu sobrenome corretamente. Naturalmente que não, porque os alemães não falam o ch como nós. Para eles, ch se lê como dois erres e não como x. Então, eu já me acostumei. Já nem presto atenção nisso. Eu mesma já falo meu sobrenome como eles gostariam de ouvir, para evitar a demora na compreensão e a explicação toda sobre a diferença de fonemas entre as duas línguas. E eventualmente a burrice daqueles que sequer sabem que se fala português e não espanhol no Brasil. Eu simplesmente não me importo com o meu sobrenome. Eu tenho 3 e não me importo com nenhum deles. Mas aqui eles são importantes. Aqui todo mundo tem a mania de chamar os outros pelo sobrenome...colocando Frau ou Herr na frente. O que me faz me sentir no século 19. E com pelo menos 15 anos a mais de idade. Também me incomoda essa ostentação gratuita do gênero. Mas é como eles gostam. Cada coisa no seu lugar. E os desajustes se dão em silêncio. Mas a médica, provavelmente uma pessoa esclarecida em termos de multi-culturalismo, insistia em aprender a pronúncia correta. Ela não sabia que eu não me importaria e eu também não quis dizer. As vezes é bom deixar as nossas verdades em lugares inalcançáveis. Mas ela continuou, perguntou a minha língua, a minha origem e eu respondi a tudo monossilabicamente. Sem nenhum complemento, observação ou comentário. Queria evitar a excitação tradicional que um alemão tem ao conhecer o exótico ser que vem do outro lado do hemisfério. Queria evitar que aquilo se transformasse em uma conversa entre duas pessoas. Eu queria ir direto ao ponto, dizer que meu corpo todo ardia e que não fazia nenhuma diferença naquele momento como eu me chamava, de onde eu era e que língua falava. Não fazia diferença quem eu era. Eu era só um corpo que ardia e queria alivio. Só um corpo. E isso é a única coisa que é realmente universal. Enquanto eu repetia a história que já havia ensaiado comigo mesma mais de uma vez, e já havia inclusive checado as palavras difíceis no dicionário, ela preparava uma injeção. Depois, foi ela quem foi direto ao ponto. Me pediu para abaixar a calça ali mesmo, de pé, no meio do hospital. E então me aplicou a injeção. Eu nem tive tempo para pensar. Nem para temer. Eu tentei respirar e não pensar na agulha, na dor, no ridículo da situação de ser aliviada por uma velha alemã de 70 anos. Eu tentava fazer a respiração que aprendi na aula de yoga. Eu tentava ser só um corpo e me concentrar nele, mas minha cabeça não parava. Ela puxava assuntos idiotas para me distrair. Falou algo sobre relaxamento muscular e hiper-ventilaçao. Eu falava Ja, ja...e sabia que seria arriscado demais querer articular uma frase nessa situação. Colocar o verbo no lugar correto e declinar adequadamente os pronomes. Eu queria me concentrar em ser só um corpo. Parecia interminável, mas eu sei que foi rápido. Saí caminhando. Tentava equilibrar em minhas mãos todos os papéis que recebi do hospital, junto com todos os adereços de inverno - as luvas, o gorro, o casaco e o cachecol. Quando finalmente terminei de vestir tudo, percebi que minha perna doía. Cruzei a sala de espera. Cruzei um casal de velhinhos em cadeira de rodas. Tinham olhos curiosos e vestiam tamancos de plástico de cores fluorescentes. Cruzei um casal de meia idade, entretidos com sua pequenez de espírito. Um garoto sozinho, que lia o jornal e tinha diante de si pelo menos 5 copos de cafés já tomados durante a espera. Era de graça. Um carro de resgate chegou, mas estava vazio. Nem sequer eles faziam ruído nesta manhã calma de domingo. No caminho de casa, Janis Joplin começou a cantar na rádio do táxi. Então eu pensei que Janis enfrentaria de frente coisas muito piores do que uma injeção em um hospital alemão altamente higienizado. Então eu deixei todo o medo ir embora e mergulhei na vista que alcançava da janela do carro. O motorista pedia explicações sobre o caminho e eu fingi não saber. Havia neve ainda. Embora o sol estivesse justamente tentando derretê-la. E desse lado da cidade, ela não se transformava em sujeira, mas em pingos brilhantes de água limpa. Havia dignidade e beleza nos pingos que sucumbiam ao sol. A médica me disse que eu me sentiria cansada e com sono depois da injeção. Mas eu fui sentindo uma calma absurda. Eu me senti flutuando numa bolha liquida. Havia beleza e dignidade em sucumbir ao efeito anestésico daquele fluído que entrou em mim via aplicação subcutânea. Eu finalmente sorri nesta manhã de domingo e aproveitei cada minuto da minha felicidade química.

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