quinta-feira, 8 de janeiro de 2009


Eu não levei o lixo para fora. Não deu tempo. Não é tão grave assim. Eu posso mandar um email para o proprietário pedindo desculpas pela bagunça e sutilmente mencionar a taxa de trinta euros para a faxina que estava embutida no preço do aluguel. Talvez isso me faça sentir menos culpada. Eu pelo menos lavei a louça. Mas depois me perdi pensando nos momentos que em pouco tempo iriam virar lembranças. Pensei que deveria tratar de recolher de novo o meu corpo que havia se espalhado para ocupar dois e que agora teria que caber de novo em um. E isso me tomou algum tempo. E não sei se adiantou, porque eu ainda me sinto como aquelas pessoas amputadas que ainda sentem o membro que não existe mais. Depois resolvi fazer mais um chá para tentar esquentar o peito. Quando me dei conta era já hora de ir e eu saí atrasada. Eu fui até a estação com o casaco aberto sem perceber e meu coração batia tão rápido que eu nem sequer senti frio. O ar que eu expirava pela boca era branco como fumaça e eu achei bonito olhar através dele enquanto esperava o trem na plataforma 14. O trem partiu exatamente às 6:32 e era noite. Eu olhei no relógio quando senti que ele começava a se movimentar e mais uma vez me surpreendi com a pontualidade. Pensei se são programas de computadores que fazem o trem iniciar sem esperar nem sequer aqueles que se atrasaram apenas um minuto. Mas quando olhei pela janela vi que ninguém se atrasou. Cruzamos a cidade iluminada e ainda demoraria para amanhecer. Eu tentei identificar os lugares em que havia estado quando não pensava em partir, embora sempre soubesse. Olhando dentro das casas, eu vi famílias tomando café da manhã como se fosse jantar.O trem andava silencioso e eu achei a cidade ainda mais bonita. Eu acho que já sei definitivamente encontrar beleza na escuridão sem sentir medo. Ou só agora eu tenha percebido que o medo também me atrai. Dentro do vagão está muito claro e o vidro reflete os que estão a minha volta. Uma garota de óculos que quase não se move enquanto lê um livro e um menino loiro de moletom marrom que come chocolate e folheia desinteressadamente uma revista que a Deutsche Bahn deixa no banco de cada passageiro. Tipo revista de bordo. Esse tipo de revista quase nunca vale a pena, mas elas podem servir para fazer colagens. Sempre há mais propagandas que textos, mas muitas vezes há fotos bonitas. Eu trouxe muitas coisas para ler, mas não tenho vontade. Talvez eu queira ouvir musica daqui a pouco. Mas agora não. Por enquanto eu quero ser invadida pela sensação de tédio. Lembrar de quando eu era criança e viajava com meus pais no banco de trás do carro. Sempre disputando a janela. E sempre achando que os destinos eram inalcançáveis. O trem pára na primeira estação. Entra um velho corcunda. Um grupo de três japoneses. Eu torço para não entrar mais ninguém e eu não ter que desocupar o assento do meu lado, onde está a minha mochila. Na verdade isso não seria um grande problema, pois há bastante espaço. A minha mala coube direitinho no lugar destinado às bagagens e ainda há o compartimento de cima. Mas eu torço mesmo assim. Nem foi difícil subir os degraus do trem, mesmo equilibrando o café com leite que eu trouxe para viagem. Como se tudo resolvesse ser mais fácil que eu mesma. Um cara de terno ocupou o lugar em frente ao meu e agora eu viajarei as próximas seis horas tendo que fingir que não estamos cara-a-cara. Os alemães preferem assim, fingir que não reparamos. Não olhar nos olhos de desconhecidos. Talvez isso possa significar algum tipo de invasão de privacidade. De novo os olhos. Uma vez alguém me disse que é por isso que há tantos espelhos nos lugares. Para triangular os olhares e permitir que as pessoas se olhem mesmo sem quebrar as regras. Eu gostei disso, melhor o apego às regras do que o desapego pelo outro. Ou o desinteresse. Noto que minha pele está seca. Pequenos sulcos vão se abrindo nas minhas mãos e elas vão ficando áspera. É preciso usar hidratante para as mãos sempre. É preciso tentar não ficar tão áspera quanto o frio. Eu me sinto seca por dentro e eu acho que não é sede, porque eu já bebi água o suficiente. Eu já tive até que ir ao banheiro que está no vagão seguinte. Não há mais luzes do lado de fora da minha janela. A cidade acabou. É só escuridão e o reflexo do que há aqui dentro. Algumas pessoas a mais. Poucas ainda. Uma mãe lendo um livro infantil para a sua filhinha de tranças loiras. Paisagem bucólica. Alguém com uniforme do exército entra e eu fico feliz pelo lugar na minha frente já estar ocupado pelo homem de terno. A companhia do burocrata me parece menos agressiva. Há menos violência simbólica nela. Quando cansei de olhar para a escuridão, eu peguei o meu exemplar da revista de bordo e comecei a folhear. Havia uma nota sobre o lançamento da biografia do Bob Dylan em alemão. Eu fico me perguntando como seria possível ele contar sua vida em alemão. E eu acho que não é. Assim como não dá também em português. A tradução que temos, aliás, é muito ruim, porque traduz man ao pé da letra. Então, é como se Bob Dylan dissesse homem a cada frase que iniciasse. Como se fosse a auto-decaração de um humanista. Como se não houvesse sutileza. A reportagem começa com a citação de uma frase dele dizendo: quando se escreve um livro desses, você deve dizer a verdade. Essa certamente não é a frase mais interessante a ser citada e eu me pergunto porque escolheram justo essa tendo o livro todo. Eu fico me perguntando se o fato de ser ou não verdade o que está escrito naquele livro importa para alguém. Eu fico me perguntando se a verdade importa. Bob Dylan nos presenteia sua vida e alguém se importa se ela é verdadeira ou não. Eu desisto da revista. Um homem passa vendendo café e chocolates. Não um ambulante. Um vendedor oficial com uniforme. Eu penso que talvez você esteja flutuando sobre mim neste momento. Eu olho para cima. A claridade vai aparecendo aos poucos. O cara da minha frente dorme. A paisagem vai aos poucos se mostrando como um desenho à lápiz em papel sulfite. Eu espero. O dia vai aos poucos amanhecendo e eu me dei conta de que esqueci de dormir esta noite. Talvez seja por isso que sinta meus olhos inchados. Ou por ter chorado demais. Ou pelas duas coisas. Talvez eu compre um creme para os olhos na farmácia perto da estação assim que chegar. A manhã vai se consolidando e eu sinto falta de ontem. Eu vejo a neve cobrindo o infinito e imagino como deve ser ver de cima os trilhos deste trem cortando o infinito branco pela metade. Estar na linha que corta o infinito ao meio é como estar em um lugar que não existe. E deve ser por isso que eu me sinto não existindo. O branco reflete toda a claridade. E a claridade deste dia é o infinito vezes dois. Eu penso que um dia assim deve valer por dois e ele talvez exista para compensar as muitas horas que passamos na escuridão. Para que as pessoas possam ao menos absorver as vitaminas de que o corpo precisa. Esse é o tipo de idéia que me faria me sentir bem, mas eu nem liguei. Agora vou fechar os olhos e colocar meu rosto no sol. Vou tentar sentir ele quente de novo. Vou largar o meu corpo e deixar que o que quer que seja o atravesse. Algo que talvez me faça lembrar de mim. Vou fechar os olhos. But i’m not sleepy.

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