terça-feira, 13 de janeiro de 2009

in the mausoleum


Você foi embora e o eu transformei saudades em raiva. Eu senti raiva por ter ficado sozinha. Você destruiu em poucos dias todo o sistema de proteção que eu tinha criado para sobreviver à solidão e ao frio. Eu tive raiva de você porque você veio, desestabilizou a minha organização interna e foi embora como se nada tivesse acontecido. E agora está na minha casa, com as minhas coisas, vendo os meus amigos e o meu pôr-do-sol. Podendo fazer tudo o que eu não posso. E não fazendo só para exercitar a discricionariedade. Sentindo um calor de que você nem mesmo gosta. E agora eu tenho a obrigação de ficar bem. De ficar equilibrada. De ser produtiva. De olhar para o lado e dizer bom dia para as pessoas que começam o dia bem humoradas. De manter a calma e declinar adjetivos corretamente. De dizer que eu ainda te amo. Agora o frio corta a minha cara e é como se eu estivesse nua. E eu nem mesmo me curei da gripe ainda. O meu peito ainda dói toda a vez que eu tusso e não tem ninguém aqui para ouvir. E a tosse vem cada vez mais alta até me deixar cansada de tanto gritar. Se você não tivesse vindo talvez eu não percebesse. Eu não iria querer ter podido te mostrar o rio congelado. A neve em cima das árvores. As flores que sobreviveram ao frio. As flores que eram eu até você me fazer secar. Talvez eu nem quisesse que você estivesse aqui na noite de lua cheia. Talvez eu me lembrasse que você nem ligaria. Talvez o melhor seja a solidão crônica e duradoura mesmo. Porque nem se percebe mais. Não se sente mais nenhum incomodo. Não se espera nada. Porque quando não se sente de novo a sensação de relaxar no ombro do outro é mais fácil não pensar. E então somos poupados do desafio de ficar de pé novamente. E não teremos vergonha por não conseguir. Talvez seja melhor não ter com quem contar e nem por quem esperar. Talvez seja mais fácil já estar morta.


Aqui na entrada da floresta tem um fila de traillers estacionados e eu fico pensando nas pessoas que sobem para acampar lá no meio da mata. Eu fico pensando no ato de acampar. Toda uma parafernália de instrumentos específicos desenhados para serem carregados numa mochila impermeável, construídos com materiais especiais, justamente para se conseguir viver uma vida simples. A tecnologia a favor do simples. Toda uma preparação apenas para sobreviver e experimentar o desprendimento fora da cidade e da sua própria casa. Parece uma contradição, mas quem sabe seja só as pessoas se dando conta do óbvio. Eu fico pensando no quanto nos faz falta uma vida mais simples. Uma xícara de café quente satisfazendo todas as angustias. O tempo gasto com olhar para o horizonte. Surpreender-se com a natureza. Deixar-se morrer com o pôr-do-sol. Eu fico pensando no abridor de latas que ninguém usa mais e nos objetos que vão aos poucos ficando obsoletos. Eu olho em volta e penso nas coisas que um dia serão vendidas no mercado de pulgas. O tempo passando e as nossas coisas ganhando valor. O tempo passando e eu usando roupas de três décadas atrás como se fossem novas. O tempo passando e as pessoas reinventando a roda em material reciclável e anti-oxidante. A roda que nos levará para o meio da floresta. Onde os milagres acontecem. Onde a mesma matéria orgânica que existe lá há séculos é capaz de nos surpreender a todo o instante. Onde nada fica obsoleto.


Eu vi o novo filme do Wim Wenders. Palermo Shooting. Eu acho que ele fez um filme para si próprio. Talvez os cineastas vivam mais tardiamente a crise de meia idade porque têm a falsa impressão de que estão vivendo mais intensamente que os outros. De que podem viver várias vidas. Tantas quantas forem as realidades que criam. Misturam suas próprias vidas com a vida dos seus filmes e não se dão conta da vida passando.
A vida passando e eles achando que podem viver a vida dos seus personagens. A vida passando e eles achando que podem construir artificialmente a neve. É certo que estão construindo um jeito de viverem após a morte. Mas não é um jeito plausível de substituir a vida antes da morte. E quando percebem que se enganaram, fazem um filme sobre alguém vinte anos mais novo tendo uma crise de meia idade. Como se isso lhes valesse os vinte anos passados sem perceber. Como se isso lhes colocasse de novo a vinte anos atrás, quando ainda era possível escolher. Mas eu não preciso ser condescendente com Wim Wenders. E nem psicoanalisá-lo para falar mal de seu filme. Ele não foi generoso comigo. Achou que poderia me dar uma aula. Uma aula chata sobre uma vida linear e sem mistérios. Uma aula em que todas as perguntas são respondidas. Todos os símbolos são explicados. Há sempre uma palavra em alemão para desvendar os segredos. Eu não entendo porque alguém utiliza símbolos se depois vai querer explicá-los todos. Tim-tim-por-tim-tim, como diz a minha mãe. Seria melhor escrever um texto no jornal. Me pouparia o dinheiro do ingresso. Com certeza dariam um espaço especial na terceira página do Die Zeit para Wim Wenders escrever suas idéias sobre a vida e a morte. Mesmo que não sejam originais. As imagens do filme são bonitas porque a cidade tem a beleza especial da decadência em estado bruto. Daquilo que já foi bonito e rico e que agora é velho e pobre e por isso está mais vivo do que nunca. Escolher essa cidade para filmar foi pelo menos uma boa intuição daquilo que o filme não foi. Mas eu a conheci no verão passado. E olhar para ela na garupa de uma vespa, com o vento de verão soprando no rosto é a vida de verdade, que eu não preciso do personagem do filme para viver. Talvez você se divirta com a trilha sonora, mas para isso bastaria o seu ipod.


Tem um carro de bombeiro estacionado há dias bem aqui na beira da floresta. Eu fico pensando se é comum ter incêndios nesta época do ano. Eu fico pensando se o fogo tem força suficiente para queimar debaixo dessa neve toda. Eu não me admiraria se tivesse. Eu penso no fogo-fátuo que se vê queimar nos cemitérios. E de repente tenho esperança de novo.

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