quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Like a rolling stone

Eu sempre pensei na história de um homem que por algum estado mental perdesse a noção do tempo e o senso de realidade. Mas justamente por isso seria capaz de viver mais próximo da realidade que todos os demais. Quando assisti a Nowhere man no cinema eu pensei que esses dois filmes – o que existe e o que não existe ainda - poderiam um dia ser colocados lado-a-lado como imagens num espelho. O primeiro, um homem que perde a memória e a noção de si e deve redescobrir-se. O segundo, um homem que perde a noção do mundo, para ganhá-la. Eu acho que de alguma forma eu me transformei no segundo homem. Parei de ler jornais e de estabelecer compromissos com base em horários. Vivo meu tempo biológico. Não consulto mais a previsão do tempo, me contento em sentir os seus efeito sobre mim e sobre as ruas pelas quais caminho. Acordo quando não tenho mais sono e como só quando tenho realmente fome. O tempo real não joga um papel muito preciso na minha vida. Talvez eu esteja só descobrindo que ele sempre foi irreal. Algo que no fundo eu sempre soube, mas deixei que as pessoas chamassem esse conhecimento de incompetência para administrar o próprio tempo. Às vezes eu acho que atravessar a biblioteca para ir tomar água pode me tomar uma eternidade. E tenho preguiça de fazê-lo. Quando me concentro muito em uma idéia, entretanto, não percebo o dia passar. Pareço ficar parada no mesmo lugar do tempo enquanto a mesma idéia durar. Eu só percebo o tempo quando acontece de eu ver o ônibus 27 passando pela minha janela. Sei que ele percorreu muitas ruas antes de voltar a passar e imagino (sem poder comprovar) que isso deve ter lhe tomado algum tempo. Antes de entenderem o tempo como um processo, os homens achavam que ele era uma coisa. Pode ser. O ônibus 27 é o tempo para mim. Nunca se sabe quando terminaremos de dar a volta completa na história do conhecimento e finalmente voltar às noções antigas. Às coisas que já sabíamos. Como ter que sair da realidade para se aproximar dela. Nada é mais real do que o nascer do sol que eu estou vendo agora da minha janela, enquanto tomo a minha xícara de café quente, sem ler jornal. Nada é mais real do que ter que providenciar sozinha todos os itens necessários à própria sobrevivência. E deixar parte do dia ser consumido por isso. É como se não houvesse coberturas nem amortecimentos. Ninguém para ajudar ou dividir afazeres. Não há nada sobre a minha cabeça que impeça que todos os efeitos do tempo caia sobre ela. Nada matará a minha sede se eu não percorrer a biblioteca e chegar até a cozinha. Nada matará a minha fome se eu não realizar todos os passos que vai desde ir ao mercado até o cozimento dos alimentos. Nenhuma cesta de legumes orgânicos chegará na minha casa nas quartas-feiras. É como se só faltasse eu fazer a minha própria roupa. O que não seria uma má idéia, aliás. Eu sempre tive vontade de fazer as minhas próprias roupas e me arrependo de não ter aprendido isso com a minha avó. É esta aproximação com as minhas próprias necessidades básicas que estranhamente me dá a sensação de que posso fazer o que quiser com a minha própria vida. De que tenho disposição completa sobre ela. De que nada me protege a não ser eu mesma. Acho que só agora me dei conta completamente de que se quiser, não preciso mais ir ao mercado, não preciso mais cuidar da conservação dos alimentos, posso não tomar água e sair no frio sem agasalho. Não haverá ninguém para impedir. Não haverá ninguém para dizer que perdi o senso de realidade. Decido livremente se quero fazer coisas divertidas ou entediantes. Se quero andar de bicicleta debaixo da chuva fria. Ou se quero ir ao cinema na segunda-feira à tarde, quando passar na frente dele por acaso e perceber que a próxima sessão vai começar. Não é preciso avisar ninguém. Ninguém sentirá a minha falta onde quer que seria o meu destino. Se não há ninguém para compartilhar a diversão, também não haverá ninguém que me convença a realizar atividades que eu não queira. Assim fica mais claro que vivo porque escolhi viver, que posso dar as minhas próprias razões para isso e decidir como fazê-lo. Que devo reafirmar esse desejo todas as vezes que ponho o casaco e as luvas para ir comprar legumes na venda da esquina e não deixo que isso seja apenas uma sucessão mecânica de atos. Nada poderia ser mais real do que isso.
Talvez seja este contraste que tenha me marcado tanto na visita que fiz ontem à cadeia pública desta cidade, junto com o grupo de estudantes de direito da universidade. Acompanhando o chefe da carceragem, que se tornara nosso guia, percorremos todos os pavilhões daquele prédio de mil e oitocentos, que é a imagem do panóptico que eu só havia visto antes em livros. Cumprimentamos os rostos bem alimentados dos detentos. Vimos as suas celas, os locais de trabalho coletivo, o pátio, o centro de esportes e a capela ecumênica. O nosso guia nos explicou em detalhes toda rotina de atividades que os presos devem seguir, cheia de horários pré-determinados. Oito horas de trabalho ou estudo diárias. Uma hora de banho de sol, quando há sol. Três horas de esporte durante a semana. A idéia, disse ele, é sempre mantê-los ocupados para evitar o pior. Isso não me impressionou. Apenas reforçou uma espécie de tristeza que sinto quando observo a rotina de muita gente que vive aqui fora. Talvez seja a rotina daqueles que precisam também buscar formas de se afastar da própria vida para evitar o pior. Talvez um dia tenha sido a minha. Mas o que não me sai da cabeça e não me deixou dormir a noite toda foi a sensação de entrar na cela especial para onde são encaminhados os presos suicidas. Aqueles que não temem enfrentar o pior. Não há nada lá. Um quarto totalmente vazio. O aquecimento vem do chão, as lâmpadas estão embutidas no teto. A privada embutida no chão. A janela bem alta, não pode ser alcançada. As paredes e o chão são revestidos de um material macio. Não há nenhuma possibilidade de executar uma auto-lesão ali. Há um vazio profundo a serviço da manutenção insana da integridade física. O vazio de uma vida que não tem disposição sobre si mesma. A forma mais cruel e radical de limitação de liberdade que uma pessoa pode sofrer. A forma mais irreal que a vida de uma pessoa excessivamente real pode adquirir.

Nenhum comentário: