segunda-feira, 14 de dezembro de 2009
She got our pain.
Eu queria tanto, tanto estar junto de você e conversar e contar experiências minhas e dos outros. Você veria que há certos momentos em que o primeiro dever a realizar é em relação a si mesmo. Eu mesma não queria contar a você como estou agora, porque achei inútil. Pretendia apenas lhe contar o meu novo caráter, um mês antes de irmos para o Brasil, para você estar prevenida. Mas espero de tal forma que no navio ou avião que nos leva de volta eu me transforme instantaneamente na antiga que eu era, que talvez nem fosse necessário contar. Querida, quase quatro anos me transformaram muito. Do momento em que me resignei, perdi toda a vivacidade e todo interesse pelas coisas. Você já viu como um touro castrado se transforma num boi? Assim fiquei eu... em que pese a dura comparação... Para me adaptar ao que era inadaptável, para vencer minhas repulsas e meus sonhos, tive que cortar meus grilhões - cortei em mim a forma que poderia fazer mal aos outros e a mim. E com isso cortei também minha força. Espero que você nunca me veja assim resignada, porque é quase repugnante. Espero que no navio que me leve de volta, só a idéia de ver você e de retomar um pouco minha vida - que não era maravilhosa mas era uma vida - eu me transforme inteiramente.
Uma amiga, um dia, encheu-se de coragem, como ela disse e me perguntou: "Você era muito diferente, não era?". Ela disse que me achava ardente e vibrante, e que quando me encontrou agora se disse: ou esta calma excessiva é uma atitude ou então ela mudou tanto que parece quase irreconhecível. Uma outra pessoa disse que eu me movo com lassidão de mulher de cinqüenta anos. Tudo isso você não vai ver nem sentir, queira Deus. Não haveria necessidade de lhe dizer, então. Mas não pude deixar de querer lhe mostrar o que pode acontecer com uma pessoa que fez pacto com todos, e que se esqueceu de que o nó vital de uma pessoa deve ser respeitado. Ouça: respeite mesmo o que é ruim em você - respeite sobretudo o que você imagina que é ruim em você - pelo amor de Deus, não queira fazer de você mesma uma pessoa perfeita - não copie uma pessoa ideal, copie você mesma - é esse o único meio de viver.
Juro por Deus que se houvesse um céu, uma pessoa que se sacrificou por covardia - será punida e irá para um inferno qualquer. Se é que uma vida morna não será punida por essa mesma mornidão. Pegue para você o que lhe pertence, e o que lhe pertence é tudo aquilo que sua vida exige. Parece uma vida amoral. Mas o que é verdadeiramente imoral é ter desistido de si mesma. Espero em Deus que você acredite em mim. Gostaria mesmo que você me visse e assistisse minha vida sem eu saber. Isso seria uma lição para mim. Ver o que pode suceder quando se pactua com a comodidade de alma. Tua, Clarice.
(Carta à irmã Tania Kaufmann, Berna, 2 de janeiro de 1947)
segunda-feira, 19 de outubro de 2009
sexta-feira, 16 de outubro de 2009
the boxer
viajar é ir verificar algo inexprimível que vem da alma, de um sonho ou de um pesadelo. eu li alguma vez alguém falando isso, e agora penso que também vale para quando viajamos no tempo. vale para quando queremos viver agora o que existiu há quarenta anos. ser o antes e o depois ao mesmo tempo, sem precisar começar de novo. pois se tempo é só deslocamento no espaço e estamos gritando para todo mundo que não dependemos disso; que a força do nosso pensamento é mais importante do que o espaço físico. então, é só seguir em qualquer direção. é só seguir acreditando nos prazeres platônicos de um mundo sem toques. ou de toques delicados, que voam no vento.
nada demais aconteceu com nós mesmos. no fundo seguimos os mesmos, diferentes. quando eu era criança e ouvia alguém dizendo que tinha mais de trinta, não estava no meu campo de possibilidades imaginar eu mesma com essa idade. eu não podia imaginar um monte de coisas. não faz muito tempo que as coisas com as quais eu sonhava só existiam no tempo de um suspiro. mas agora é como se o tempo congelasse bem no momento desse suspiro. elas existem e, ao contrário do que eu pensava, tudo continua igual. notamos isso quando eu ainda não havia ouvido the boxer direito. sim, é preciso prestar atenção nas letras também. vc se sentia normal diante do extraordinário e me perguntava se isso estava certo. normal, eu acho que isso significa apenas que mudamos tanto que agora conseguimos ver o que somos. e ser. “é preciso permanecer para mudar”, vc diz e eu concordo. eu também diria que precisamos mudar para permanecer. nada mudou desde que eles compuseram the boxer em 1968 ou desde que eles a cantaram no central park. em 81. embora tudo esteja diferente. now the years are rolling by me, they are rocking even me, i am older than i once was, and younger than i’ll be, that’s not unusual, no it isn’t strange, after changes upon changes, we are more or less the same…
não, eu também não acho estranho.
quinta-feira, 15 de outubro de 2009
segunda-feira, 12 de outubro de 2009
Låt den rätte komma in
“Seja eu um pouquinho”. É só isso que Eli pede a Oskar. É só disso que um amor precisa. Não é tão difícil assim amar, e só que às vezes as pessoas estão entretidas demais consigo mesmas. Ou simplesmente não querem olhar. Evitam a decepção, como se pudessem evitar os dias de frio. Como se fosse melhor se proteger deles. Mas isso é para aqueles que têm expectativas demais. Que não estão realmente suscetíveis ao outro. Que não conseguem descobrir a beleza dos jardins secos nos tempos de neve. A vantagem de ser um garoto de doze anos que apanha na escola é a de não haver alarmes, nem julgamentos. Talvez seja mais fácil entender o que é amizade e amor de verdade quando vc já foi um deles. Porque viver no mundo das pessoas não-ideais é não precisar fazer perguntas demais e não precisar explicar. Simplesmente entender. Simplesmente aparecer para não passar sozinho uma noite escura. Dar-se mãos mesmo que isso não se encaixe em nada. E não se encaixar não muda nada. Tá tudo certo. Tá tudo certo entre aqueles que ficam em silêncio, nunca sabem direito o que dizer, mas acabam dizendo tudo só com um abraço. No mundo das pessoas não-ideais nós nos sentimos protegidos pela fraqueza do outro. Não duvidamos que o fantástico pode mesmo existir e desejamos incondicionalmente o real.
sábado, 10 de outubro de 2009
isolation
quando vocês foram embora, john continuou dizendo que não acreditava em nada. só nele mesmo. nós já havíamos falado das vantagens da imanência e do homem condenado a sua própria liberdade. e daqueles que não aguentam e preferem lamentar a própria vida e sentirem-se presos nela por ordem de deus ou do destino. formas transcendentais, que aliviam o peso da responsabilidade e que a transformam em culpa. e a culpa nesses casos parece algo muito arbitrário, que vem de fora. provavelmente de alguma igreja. i don't expect you to understand, ele canta. after you caused so much pain; but then again you're not to blame. porque conseguir ou não olhar o outro não tem afinal nada a ver com culpa. tem a ver com o presente. tem a ver com vencer o obstáculo sempre presente das palavras não ditas. a agressividade que no outro é tristeza e que deveriam ser ambas chamadas de amor. você de pé e nós sem saber o que fazer, nos perguntando ao mesmo tempo: what am i supposed to do? what am i supposed to be? nunca seremos. nunca seremos a mesma coisa para cada um de nós. porque eu sou diferente da projeção que você faz de mim e o que eu quero dizer é diferente do que o que você entende que eu digo - isso é inevitável. ainda que pareçamos simétricos do seu ponto de vista, isso é só uma ilusão de ótica. ainda que eu tente antecipar as imagens do que vc vai entender a partir do que eu digo, eu nunca chegarei perto. é inclusive possível que eu me afaste de você. e isso seria ruim. por isso quando nos encontramos em algum lugar longínquo dentro da teia de significados, é quase um milagre. é algo que pode fugir rapidamente de nós, se não soubermos olhar. há coisas que ninguém pode ver e que portanto não sabemos se existe. e por mais estranho que pareça, isso é uma espécie de princípio de sanidade. garante que sempre haverá a possibilidade de aparecer algo surpreendente. possibilidades randômicas, como uma roleta russa. nunca saberemos a hora certa. a conversa foi desconectada porque as nossas cores nesta noite não eram nem complementares, nem pastéis. as cores pastéis podem conviver perfeitamente entre si o tempo todo. não ocorrerão dissonâncias. as cores fortes nem sempre. depende da posição no círculo cromático, assim como a posição dos astros. quer dizer que vai ter noites que quando elas se juntarem na mesma sala, em volta da mesma vitrola, não haverá harmonia cromática. a noite não será calma. a noite será boa, mas estranha. será intensa. ficaremos cansados. nossas retinas fatigadas. às vezes nos sentiremos isolados. e isso não é necessariamente ruim, porque nos alegraremos a cada encontro aleatório. isso quer dizer que vai ter um momento em que cada um vai dizer coisas desconexas, que cada um sentirá profundamente uma coisa diferente e não vamos nos entender mesmo. ninguém será culpado, nem responsável. mas por alguma razão você vai desistir de ir. vai tirar os sapatos, deixar a bolsa no canto e sentar-se no sofá novamente. isso é conseguir ver o outro mesmo quando o fog está denso. o vinil acaba de tocar e eu tenho preguiça de levantar para virar o lado. é que às vezes eu acho que nossos dramas são tão imaginários quanto a nossa felicidade. mas também pode ser exatamente o inverso.
quinta-feira, 8 de outubro de 2009
8/10
todo ano eu me lembro que foi hoje que mataram o che guevara. nós costumávamos lembrar disso na época de faculdade e sair para beber. nós, poucos. mas sempre. continuei lembrando dessa data em todos os outubros e já faz quase dez. e só este ano eu descobri que meu avô também morreu nesse dia. este ano fui ao cemitério com a minha mãe e minha irmã, sentamos em frente à sepultura dos meus avós e tomamos sol. nos pareceu um lugar adequado para um picnic. me pareceu adequado sair para comemorar a morte, porque é exatamente a mesma coisa que comemorar a vida. eu me surpreendi qdo olhei essa data marcada em relevo na lápide do meu avô. um conjunto de números, que formavam um palíndromo exato com o dia do meu aniversário. não precisávamos ser tão literais, né, vô? mas sempre tem o dia em que vc vira os seus antepassados. o dia em que sua família vira seus heróis. e que seus heróis viram sua família.
quinta-feira, 17 de setembro de 2009
home
Eu entro no horoscope for free, preencho todos os campos requeridos e ele me diz para confiar na minha intuição. Sou apenas eu e minha intuição agora. Em seguida, entro no site da previsão do tempo, digito lajeado, RS e ele me dá a previsão do tempo do Alabama, AL. Coincidência ou destino? Tanto faz: eu poderia ir para qualquer lugar agora. Não me importaria pegar o avião errado. A contrapartida da vulnerabilidade é te deixar suscetível a qualquer coisa. Aproveite. Você segue a coincidência e o destino e quando acordar pode estar em Lajeado, RS ou no Alabama, Al ou sozinha no seu quarto escuro iluminando aos poucos partes do seu corpo com uma lanterna. Fixação visual. Todos os sentidos me fazendo entender que a realidade não é algo que se desprega do meu corpo. É apenas algo que acaricia a ponta dos meus dedos e se torna a segunda pele de mim mesma. Eu encontrei esse texto no bloco de notas do meu iphone e já faz quase dez dias. De lá pra cá eu descobri que coincidência e destino na verdade têm nomes próprios. E eu os sigo porque me fazem voar quando corremos de mãos dadas.
domingo, 30 de agosto de 2009
Meu mundo Thelonious Monk's blues
terça-feira, 18 de agosto de 2009
cioran
domingo, 16 de agosto de 2009
morro gaúcho
hoje eu fui na praça ver o pôr-do-sol. eu fiquei feliz quando descobri que poderia ter desde esta praça a mesma vista que tínhamos de nossa varanda. apenas em outro ângulo. é como se eu pudesse vir aqui revisitar o meu passado, sem ter que voltar a ele. é como estender meu pano na grama, sentar, deixar as pupilas se ajustarem ao horizonte, respirar fundo o ar seco da cidade para então olhar eu própria à distancia, antes. a praça estava lotada. quando faz calor, há mais gente na praça. e menos casacos de inverno. nada se compara à liberdade de não precisar de roupas pesando nos ombros. a temperatura finalmente subindo. olhar para o céu bem grande acima de você e pensar que nada te separa da atmosfera. que a pressão do céu bate diretamente e de forma macia na sua pele. encosta nos pelos do seu braço e produz uma espécie de cansaço nos músculos. as pessoas formavam pequenos clusters espalhados pelo gramado íngreme da praça. cachorros, crianças, mochilas, livros. ipods. cervejas. pessoas sentadas. pessoas deitadas. pessoas de pé. uma mulher que não se cansava de ouvir a própria voz. o grupo de operários da construção civil entre os garotos da classe media de pinheiros. uma paisagem que não parecia deslocada no contexto da praça. as conversas às vezes se misturaram. os olhares às vezes se cruzavaram. faltam poucos minutos para o sol se por. mas dá para ter pelo menos meia-hora a mais de dia depois que ele se vai e as pessoas o aplaudem. eu gosto de viver até o final a meia hora depois que o sol se põe. um pôr-do-sol é como um ritual de homenagem aos fins. pois eles são tão importantes quanto os começos. e parafraseando o filme eu me perguntei quantos pôr-de-sóis mais eu assitirei na vida? eu me imaginei protegida pela beleza daquele céu laranja-amarelo-azul-claro-azul-escuro e não tive medo da resposta. foi como se apenas essa visão já valesse a pena. a resposta à minha pergunta vai ser a que tiver que ser. na minha cabeça toca naked if i want to.
uma mulher chega acompanhada de dois poodles. ele conta que eles costumam ter um temperamento estranho. no começo eles são muito ansiosos e passam alguns anos vivendo como se estivessem no auge de uma crise psicótica. mas depois de um tempo se transformam no cachorro mais inteligente e companheiro que há. talvez os poodles sejam só uma metáfora em um filme sobre comming of age na sociedade de hoje. talvez por isso tenham se tornado tão populares.
eu pensei nos domingos em que eu me sentava na nossa varanda e assistia ao pôr-do-sol enquanto vc dormia no quarto. o silêncio que representava uma calma que não existia. a lembrança desses pôr-de-sóis me pareceu triste e solitária. um lugar de onde as pessoas da praça não existem. nem os poodles, as crianças, as cervejas e os ipods. entender uma coisa apenas com um sentimento é como ter um calafrio que te faz sentir exatamente a relação entre a temperatura do seu corpo e a temperatura do ar.
eu tenho agora uma outra varanda. e é como se dela eu pudesse tocar tudo o que eu vejo. é sentir-me mais perto. onze andares mais perto da realidade. e a realidade não é ruim. de qualquer maneira, ter uma varanda é o que dá certeza de que vc escolheu viver. se vc tem uma varanda, leve uma almofada e um cobertor para lá. deite-se no chão fresco. ligue o seu ipod no modo shuffle e olhe o céu. haverá um momento em que donavan cantará the season of the witch só para você. depois belle & sebastian ressoará ao longo de toda a distancia que separa a sua varanda até o chão da rua: yes, she’s losing it.
quarta-feira, 12 de agosto de 2009
these boots are made for dancing
vc só é capaz de comprar botas de cowboy quando está sozinha e não tem ninguém olhando. vc sempre quis ter botas de cowboy, mas nunca teve coragem de. vc sempre achou que não combinava com vc ou com o que os outros imaginam de vc. mas quando não se tem nada a perder - nada a perder na definição de janis joplin - vc entra decidida na primeira loja em cuja vitrine há botas de cowboy marrons, com franjas e detalhes em couro sintético imitando o pelo de algum animal. vc desfila pela loja e repara no tamanho da sua bunda, quando espia o espelho de canto de olho. mas já nem liga mais muito para isso. afinal, trata-se apenas de sentir se as botas são confortáveis. sim, são forradas por dentro. sinal de maturidade. 5 x sem juros no cartão. estão em promoção. e logo vc estará dançando o seu próprio aniversário, vendo o mundo de um angulo um pouco diferente. o som atravessando o seu corpo. cada nota deslocando uma certa quantidade de ar. pura mecânica de deslocamentos. os agudos são mais fracos e podem ser facilmente desviados ou absorvidos. por isso, o ideal é que eles corram pelo teto, enquanto os graves circulam entre nossos pés e nos une em passos de dança sincronizados. nossos ouvidos captam apenas um determinado intervalo de freqüência e o que está abaixo ou acima disso nos atravessou de outro jeito naquela noite. tudo aquilo que nossos ouvidos ignoraram se movimentou livremente pelos cômodos do meu apartamento. passou deslocando pequenas porções de ar e chegou aos nossos corpos como se fosse um toque leve de uma mão nervosa. algo que poderia ser uma carícia, quando as carícias ainda causam tremor. emitir emoção física em forma de corrente de energia é um jeito lindo de se comunicar. é contar uma história que atravessa a roupa, passa direto pela pele e ressoa na parede interna dos nossos órgãos. é contar uma história sem precisar pensar no emprego correto das palavras ou nas conjugações verbais. sem reduzí-la a teses bem fundamentadas sobre o mundo. quando vc sente o som ressoando dentro do seu corpo, vc sabe que o volume pode não fazer bem aos tímpanos. vc sabe que os vizinhos reclamarão. mas vc apenas fecha os olhos e entende que é assim que é quando a luz começa a respirar.
segunda-feira, 3 de agosto de 2009
domingo, 12 de julho de 2009
domingo, 5 de julho de 2009
Terminal Rodoviário Tietê: standing on the corner, suitcase in my hand, jack is in his corset and jane is in her vest. i'm in a rock n' roll band.
Agora tem três mulheres negras sentadas na minha frente. Elas são gordas e usam roupas largas e coloridas. Uma delas, a de cachecol quadriculado, lê uma revista e mexe os lábios, pronunciando silenciosamente cada palavra. Como se o silêncio que ela pronuncia a ajudasse a se concentrar. O silêncio nunca nos ajuda a concentrar. Ao contrario. O garoto e seu avô sentam lado a lado e olham para o mesmo lugar vazio. Não se falam. São representações vivas das gerações unidas por vazios e faltas. São muito magros. Silêncio não é nem vazio e nem falta. E não podemos olhar para ele.
Uma musica bem alta vem dos alto-falantes e o som ecoa nas paredes de concreto desta rodoviária. A luz cinza do dia entra pelo teto e as pessoas caminham calmamente pelo saguão. Aqui todo mundo parece ter mais tempo e menos pressa do que as pessoas que andam pelo saguão do aeroporto. Aqui as pessoas são mais coloridas. Aqui tempo não é dinheiro. Toca Elvis e uma das senhoras negras que ocupa duas cadeiras de espera junto à plataforma trinta e dois acompanha o ritmo da musica com o pé. Depois take a walk on the wild side e ela pára de mexer o pé. Uma seleção musical inusitada e eu penso se é comum ter musica ambiente nesse tipo de lugar. Nesse momento a minha memória confunde música ambiente com a música que vem do ipod e eu não chego a nenhuma conclusão. Esse lugar só pode ser muito incomum ou comum demais.
Uma frutaria vende sucos naturais de muitos sabores diferentes e aqui a regra é o suco vir com açúcar. Se vc não quiser que o suco venha com açúcar, é preciso falar isso muitas vezes para a moça que está te atendendo. Uma moça muito magra.
Saio a procura de um guarda-chuva, pois acabo de ser informada de que chove em Paraty e que acabaram todos os guarda-chuvas da cidade. O dia em que todos os guarda-chuvas de uma cidade se acabam deve ser um dia importante. Chove aqui também. Chove em toda a parte em que ontem fez sol. Mas eu me sinto menos suscetível às mudanças climáticas. Talvez graças a você. Agora o sentido dos dias cinzas é pensar em não me lamentar por eles. Lamentar me parece agora um sentimento inútil. Assim como arrepender-se.
O ônibus parte e eu me sinto em casa cruzando a Avenida Cruzeiro do Sul. Eu me sinto em casa quando passo em frente de um letreiro que diz Estrela do Araguaia Norte Bar e Lanches. É sempre mais fácil partir no momento em que já se partiu do que quando se imagina partir. Eu faço planos de viver mais on the road. E penso em vc falando sobre a necessidade de fazer uma viagem beatnik e achando que é mais difícil do que é. Uma viagem beatnik deve ser necessariamente uma viagem sem planejamento, por isso ela tem que acontecer no exato momento em que vc decide ir. Quando estiver em dúvida olhe para as palavras escritas no seu braço direito. Sim, eu te contarei as palavras mais bonitas que ouvir. Eu falarei sobre tudo na próxima vez que estivermos sentados no tapete da sala. Menos sobre a cerveja que teríamos tomado juntos. Menos sobre o beque que teríamos fumado juntos. Menos sobre os nossos passos truncados andando nas ruas da cidade antiga. Eu também não te contarei sobre o sol, porque não haverá sol.
O motorista do ônibus se chama Adaílson e pede para que todos usem cinto de segurança. Cintos de segurança e guarda-chuvas são objetos da mesma classe e eu tenho ambos ao alcance das mãos neste momento. Eu nunca tenho um guarda-chuva por perto quando realmente preciso. E por isso aprendi a gostar de ter que improvisar algo para me proteger assim que a primeira gota de chuva cai do céu. Abdicar de portar objetos de proteção é também uma forma de desapego e eu finalmente entendi que toda forma de desapego é sinal de maturidade.
Não há transito na marginal. O barulho que vem de fora parece o barulho do mar calmo. Agora eu não tenho que fazer mais nada. Reclinar a poltrona. Colocar o fone de ouvido. Escolher sigur ros para tocar. Fechar os olhos e sentir o cheiro do mar. O mar de verdade.
Três dias passam rápido. O tempo exato para fazer a expectativa se transformar em fotos não tiradas e banho de mar não tomado. A paisagem vista do banco de trás do carro. A curva que passa pelo cemitério São Francisco de Assis e nos leva diretamente para a cidade. Distâncias percorríveis à pé. O cheiro do mar e as garrafas de água vazias jogadas na praça da matriz. No fim da festa, o que há de mais belo e mais sujo se acumula ao lado da homenagem ao Hamlet. Três é sempre um número perigoso e há sempre o risco de magoar e ser magoado
Quando estávamos voltando, ele contava sobre uma montanha que se rachou e de dentro dela brotou um rio. Uma quantidade de água grande e forte que arrastou animais, destruiu casas e interditou a estrada que liga Paraty a Cunha. Eu nunca imaginei que a montanha fosse feita de água. Eu nunca imaginei que a montanha represasse um rio bravo dentro de si. E nem que ela poderia um dia simplesmente rachar para poder chorar. A montanha é mais uma das nossas idealizações. Precisamos acreditar que quando não agüentarmos mais seguir por conta própria, haverá sempre algo mais forte do que nós, pronto para nos proteger. Isso é quando não queremos enxergar a fragilidade do outro. Isso é quando superdimensionamos a nossa.
quinta-feira, 25 de junho de 2009
brasília
quando o dia amanhece cinza e chuvoso convém sempre lembrar que é possivel fugir em direção ao sol. eu voei uma hora e meia para longe da chuva em direcao a um dia ensolarado e quente no planalto central. essa cidade sempre me surpreende por sua estranheza. eu me pergunto que tipo de pessoa pensou construir uma cidade assim? a pretensão de alguém que achou que podia criar a vida artificialmente. uma vida inabitavel. distâncias intransitáveis para pés descalços. os campos planos e verdes cortados por formas inusitadas, geométricas. anti-naturais. a coragem do homem querendo provar que a razão vence a natureza. que o cálculo preciso e a estrutura dos materiais podem superar a beleza de um pôr-do-sol. um projeto que se revela melancólico na fachada de um prédio sem janelas. há uma tese por trás de cada edifício. como se fosse possível viver só de argumentos. brasília é a materialização da modernidade. é uma maquete triste de um projeto belo e inacabado.
durante a reunião de hoje, enquanto eu olhava o horizonte pela janela de vidro, enquanto as carpas nadavam no lago artificial que cerca o edifício e o funcionário do cafezinho entrava na sala fazendo a louça tilintar de forma pouco sútil, um homem branco de barba aparada e terno bem passado contava que uma vez um índio bravo lhe apontou uma flecha para que seu argumento contra a construção de uma hidrelétrica fosse ouvido: os peixes não podem morrer, porque os peixes seguram o rio. e o rio segura o céu. e é o céu que segura o mundo. então sem os peixes, o mundo vai acabar. o índio sabe que nunca será ouvido sem a flecha. e que a flecha já perdeu a batalha para a pólvora há muito tempo.
no pulso esquerdo bang-bang.
agora eu volto para a cidade de céu cinza. não se pode ficar muito tempo acima das nuvens, onde sempre há sol. essa é a nossa condição na terra. acabo de saber que michael jackson morreu. o homem que havia dominado a natureza sucumbe a ela.
o horizonte alaranjado sempre está nos esperando ao fim de cada dia. mesmo que não possamos olhar para ele. mesmo que não queiramos olhar para ele.
segunda-feira, 22 de junho de 2009
segunda-feira ao sol.
domingo, 21 de junho de 2009
sunday sadness
é domingo à noite de novo. e eu penso que as noites de domingo não deveriam existir. agora somos apenas pequenas bolhas de solidão espalhadas no espaço. cada um de nós tentando se esconder da escuridão embaixo da luz amarela de uma luminária de mesa. cada um de nós tentando se esconder do silêncio no som que vem do shuffle de nossos ipods. cada um de nós tentando se esconder do vazio nas lembranças de um dia em que fomos felizes. cada um de nós tentando encontrar sentido para as horas de insônia nas telas brancas de nossos computadores. se temos tudo isso em comum, porque então não estamos juntos agora? vc diz que estar junto não é físico e eu preciso acreditar nisso. desafiar a matéria e torcer para esse pensamento não me abandonar nesta noite fria de domingo. eu fecho os olhos e paro de respirar até esta noite passar. ou até o próximo vento me arrastar em sua direção.
sentimental journey ou o ponto final do terminal pirituba
sexta-feira, 12 de junho de 2009
mude-se
domingo, 7 de junho de 2009
terça-feira, 2 de junho de 2009
winnipeg, colorado
eu poderia entrar nesse avião que vai para winnipeg ou em qualquer um dos vôos que partem deste aeroporto internacional na próxima hora. eu poderia passar alguns dias em qualquer que seja o lugar para onde eles me levem. eu poderia ficar aqui e ir amanhã ao show ao ar livre do leonard cohen no red rock amphitheatre. ou esperar o the killers tocar aqui no próximo mês e no meio tempo tentar subir em mais um dos 55 picos ao redor de denver. também não seria difícil voltar para nyc só para ver a pj harvey no beacon theatre na semana que vem. há vôos para lá em todas as horas pares. as pessoas embarcando no portão ao lado estarão em frankfurt amanhã. poucas horas a separam de um passeio no fim da tarde ao longo do rio main ou de um dia calmo em uma das bibliotecas públicas mais lindas que eu já conheci. estar em um aeroporto te faz lembrar da quantidade enorme de opções de lugares para passar os próximos dias. talvez seja recomendável que visitemos um aeroporto internacional de vez em quando. as pessoas andam apressadas de um lado para o outro. o soldado americano carregando sua mochila imensa caminha com o orgulho de um derrotado. e eu penso que se eu escolhi entrar nesse vôo que sai em dez minutos para washington e depois me levará direto para são paulo é porque eu escolhi abrir mão do leonard cohen tocando ao ar livre em plena primavera no meio das montanhas vermelhas, do killers, da pj harvey, do rio main e da biblioteca pública cheia de vidros de onde se vê o jardim florido. e isso quer dizer que realmente tem que valer a pena voltar.
o aeroporto internacional de denver fica a quarenta minutos da cidade e no meio de um campo quase desértico. é um deserto em sentido técnico, mas não é um deserto de areia como imaginamos toda a vez que pronunciamos essa palavra. o prédio do aeroporto é uma estrutura metálica que surge de repente no meio de um campo amarelo e interrompe a seqüência infinita de nuvens brancas no céu azul turquesa. é certamente um estranho para a arquitetura local feita de estábulos de madeira escura e povoada prioritariamente por cavalos e búfalos. há pássaros cortando o céu, mas eu não sei se eles vivem aqui ou estão de passagem. além de mim, do motorista do táxi e dos passageiros que ocupavam os poucos carros que nos ultrapassaram no caminho, eu não vi mais nenhum ser humano ocupando essa paisagem infinita. é possível que o deserto invada o aeroporto em bem pouco tempo. o vento aos poucos traria a terra para dentro desse saguão e ela se acumularia a partir dos cantos, com a conivência das faxineiras mexicanas. eu acho que de alguma forma isso já começou a acontecer porque qualquer um que se sentar em uma das cadeiras da área de embarque do terminal b e olhar para cima verá que os passarinhos já tomaram esse prédio de carpete cinza, vidros fume e ar condicionado controlando a temperatura ambiente. eles voam calmamente de um saguão para o outro, pousam nas cadeiras ao lado da janela, alimentam-se das migalhas que as crianças deixam cair de seus sanduíches e eventualmente cantam. às vezes eles deixam escapar um som tão alto que podem ser confundidos com o som do alto falante. mas por enquanto poucas pessoas parecem notar essa ocupação silenciosa. em dez dias, essa é a primeira exceção que eu encontro a algo que se pode denominar uma terra sem sutilezas. e não me surpreende o fato de que ela não tenha nada a ver com a civilização local.
se vc algum dia vier para denver, colorado, entenderá exatamente o que é a ausência de meio-tons. tudo aqui funciona por contraste, como o clima no deserto. você morrerá de calor e sede durante o dia e quando sair na rua à noite usando roupas leves vai sentir o seu corpo realmente congelando. no primeiro dia vai entender que é assim que funciona o clima no deserto e que todo o resto segue exatamente a mesma dinâmica. essa parece ser a regra básica para se acostumar com esse lugar: tudo muda muito rápido e drasticamente. o dia pode amanhecer azul e em menos de meia hora chover uma tempestade cinza escura com raios e trovões. e o sol certamente voltará a aparecer em menos de um quarto de hora depois que as últimas gotas de chuva cairem. se você andar pela cidade, vai cruzar cowboys autênticos e cinco minutos depois quase ser atropelado por um garoto de boné, calça baixa e camiseta surrada com a estampa de uma banda indie rock andando de skate pela calçada de cimento. alguns bares estarão cheios, haverá musica alta, pessoas bebendo cerveja e rindo alto e um bloco adiante a rua estará absolutamente vazia e quieta como se a cidade toda já estivesse dormindo. há muito vento por aqui. e muitas mudanças podem vir com o vento. ou com as empresas de petróleo. ou com as políticas de desenvolvimento regional. gary me explicou que recentemente houve uma tax policy do governo do estado que fez com que muitas empresas se mudassem da califórnia para cá. empresas de tecnologia e de energia, que aparentemente impactaram a economia local anteriormente movida por agricultura e pecuária. parece que desde que o ouro daqui acabou, no século dezenove, nada de muito significativo havia acontecido, exceto os filmes de john wayne. mas agora denver tem um centro financeiro com prédios altos de vidros espelhados, lojas de marcas internacionais e homens de terno circulando apressadamente pelas ruas durante os horários comerciais. mas se vc se afastar desses quarteirões chiques e andar dez quadras até a 7th street vai encontrar um bairro inteiro com prédios velhos de tijolos marrons corroídos e bares que se chamam shelby’s ou the fainting goat. e vai ver que o western e os búfalos ainda estão na raiz desse lugar. vai conversar com gente que conta que pela manhã seus cachorros quase foram comidos pelos coyotes. pessoas que não tomam banho há algum tempo e que vão te contar sobre os shows de rock que elas presenciaram no final dos anos 60, quando grateful dead e jefferson airplane tocaram no teatro a céu aberto. você vai ver mulheres negras obesas, com quadris enormes, ainda que as estatísticas nacionais digam que o colorado é o estado americano com a menor proporção de obesos na população. você certamente simpatizará com os ídolos e mitos locais: o índio sioux, o cowboy que masca um pedaço de grama no canto da boca e o astronauta john jack que pisou na lua pela primeira vez. você vai acabar achando que o colorado tem muito mais a ver com a cidade de onde você veio do que você imagina. eles também comem muita carne e bebem em excesso. vomitam na calçada, andam de carro e terminam a noite vendo o sol nascer em algum dos morros que rodeiam a cidade. sentindo-se tão reais quanto o ar frio da manhã.
domingo, 31 de maio de 2009
sábado, 30 de maio de 2009
sexta-feira, 29 de maio de 2009
b-sides and scratches
quinta-feira, 28 de maio de 2009
city of glass
terça-feira, 26 de maio de 2009
segunda-feira, 25 de maio de 2009
nyc
quando eu embarquei sozinha para a viagem que planejamos fazer juntos eu pensei: ou eu estou segurando sozinha o arco da promessa ou não há mais promessa.
segunda-feira, 11 de maio de 2009
empty spaces
quinta-feira, 7 de maio de 2009
Nós que nos amávamos tanto
domingo, 3 de maio de 2009
domingo
sexta-feira, 1 de maio de 2009
la chute
a sensação da queda livre é bastante paradoxal. o abismo é a mais comum representação da morte, mas a adrenalina da queda intensifica todas as sensações de vida. a vida segura e sem adrenalina é a morte em seu disfarce mais comum. não é preciso ser um gênio para desvendá-la. mas é preciso ter coragem para dizê-lo. foi o inconsciente que disse tudo primeiro. e nós o seguimos como garotos bobos que não entendem o que fazem. que se deixam seduzir pelos garotos mais experientes, que têm tatuagem, fumam na rua e nos olham de cima. no fundo, eles cobiçam a nossa inocência. mas não agüentariam voltar para casa para fazer a lição de matemática. o que a gente demorou para perceber é que isso sim é arriscar a vida. eu só torço para que haja algo lá embaixo para amortecer a queda. mas se não tiver, não importa mais. eu acho que consigo agüentar a dor dos ossos se quebrando.
se você for de são paulo não leia esse texto.
Acordei cedo. Não gosto de ter uma gripe rondando o meu corpo. Faz tempo que não saio de casa para quase nada. Vou ao yoga. Corro no parque no meio da tarde e caminho um pouco pelas ruas que compõe o quadrado da minha casa. Tenho evitado metrô. Ônibus. Estou sem carro e isso não é tão ruim. Tenho amigos bons. Amigos com carro. Amigos que eu conheço há muitos anos. E cada vez mais eu tenho certeza de que o melhor é ficar em casa com esses amigos. Os copos andam sujos demais. A cerveja não é a melhor pedida e essa cidade não presta nas noites antes dos grandes feriados. Mas eu tento. Eu sempre acredito que pode ser legal.
Como quando você está em casa e se depara com Gal Costa cantando “Dê um Rolê”. Impossível não acreditar se é ela quem diz que a vida é boa. É preciso estar atento às datas das canções. Aprendo isso um pouco mais a cada dia. Se alguém te diz “não se assuste pessoa se eu lhe disser que a vida é boa” por favor entenda que isso foi escrito em mil novecentos e setenta e pouco e isso já faz parte do passado. Atente às canções de agora. Por mais vazias que elas possam ser.
Mas às vezes ficamos desatentos e a desatenção é um perigo. Sim. São Paulo é uma selva e eu estou longe daqui faz muito tempo. Não me acostumei. E não pretendo me acostumar a essa cidade.
Pegar o metrô às seis da tarde pode ser quente demais. Mas sempre tem uma menina que também poderia simplesmente ser a sua musa. Talvez eu devesse ter simplesmente seguido a menina bonita que estava no mesmo vagão que eu. De vez em quando ela desviava os olhos do livro e ela tinha olhos de coelho assustado e eu pensei em Alice. Em seguir simplesmente alguém sem saber onde eu poderia chegar. Eu fazia isso quando cheguei aqui. Nas festas eu escolhia uma pessoa para seguir. E não seguia apenas dentro do salão. Uma vez caminhei da augusta até depois da Vila Mariana. Até São Judas. E valeu à pena. Ganhei uma amiga. Até hoje, depois do sexo, depois dos beijos, depois das perseguições, o que perseverou foi um tipo de amizade que nos une para sempre. Éramos quase adolescentes. Somos para sempre adolescentes. Mas brincar de gato e rato ainda é coisa para os mais novos.
Mas você sai na estação Consolação e a menina continua lendo o seu livro e a vontade que implica você ter para sair de um metrô precisa ser grande demais. Cada espaço, por menor que seja, implica contato. Cada passo é um contrario à direção de alguém. Mas eu atravessei o mar quente de pessoas feias e cheguei à superfície. No alto da paulista respirei o ar pesado da noite de ontem. E não foi bom. Não é bom. Olhei para o céu, mas não dava para ver muita coisa. Entrei no Banco do Brasil. Saquei sem medo de ser roubado com sorriso nos lábios. O dinheiro é o passaporte para a felicidade. Trate de ganhar o seu se quiser continuar aqui.
Depois Livraria Cultura. O livro de correspondências da Clarice Lispector. A identificação imediata com quase todas as linhas. Sentado na pequena sala de estar esqueci o mundo por dez paginas antes de encontrar uma menina. Uma menina que nasceu lá longe onde eu nasci. Uma menina que era minha colega de escola e que hoje tem o seu escritório de arquitetura em algum lugar bem alto dos prédios bonitos da avenida paulista. Atravessamos as ruas na direção do centro. As mesmas pessoas subindo a Augusta. Os mesmos papos entre nós dois. O mesmo conflito de nove meses atrás. Depois um kebab. Aproveitar cada mordida. Nada como comer em São Paulo. Nada como pagar em São Paulo.
Depois caminhar mais um pouco. Descer sempre mais. receber chamadas. Atender chamadas. Escrever mensagens. O mundo sempre se surpreende quando tudo o que você deveria fazer é voltar para casa. Mas você pede mais uma cerveja e é claro que mais uma cerveja e sempre mais uma cerveja. Alguma coisa dentro de mim dizendo que vinho ainda é melhor. Que o tapete da minha sala está mais limpo do que a calçada onde crianças brincam e sujam o mesmo ar que respiramos. Peço à dona do bar que toque mais uma vez “Maria Bethânia”, a canção que Caetano fez no exílio. Mas a dona do bar responde que não lembra em qual disco ela havia gravado essa canção e, na verdade, ela não sabe sobre qual musica estou falando e canto um pedaço mas a expressão do seu rosto continua a mesma. Me olhando como quem perde tempo. Aqui sou apenas uma bêbado inconveniente. Um bêbado inconveniente que bebe cerveja cara e experimenta um rodízio de amigos. Quando ela me olha assim eu sei que eu deveria estar em casa. Ouvindo as minhas musicas. Bebendo nos meus copos. Com todos os telefones desligados. É assim que os gênios criam suas grandes obras. Não tenho o menor saco para cronistas urbanos e menos ainda para filosofia de mesa de bar. Mas às vezes a gente esquece. E cai na armadilha mais perigosa. A armadilha da desatenção. Dos goles feitos de inércia. Dos olhares carregados da mais pura verdade: aqui não sou ninguém.